Dois dias não bastam
A licença da CLT para pessoas de luto expira rápido. E as empresas que entendem isso estão repensando suas políticas de cuidado.
Dificuldade de concentração, esquecimento, melancolia, entre outros sintomas, andam me rondando. Percebi que atividades criativas, como escrever esta coluna, estavam particularmente desafiadoras. Logo eu, sempre tão cheia de ideias, não conseguia encontrar um ponto de partida para desenvolver o texto. Comecei a procrastinar. Não me reconheci. E, de repente, veio uma inspiração: só tinha um tema sobre o qual eu queria falar, escrever, refletir e, enquanto não trouxesse o tema à luz, seguiria com o famoso “writer’s block”, o malfadado bloqueio criativo do(a) escritor(a). E esse tema é o luto.
Perdi alguém central em minha vida, meu pai. Embora fosse esperado, pois ele já estava debilitado e eu vivia um luto antecipado, nada disso me preparou verdadeiramente para sua partida.
Fui percebendo o quanto esse processo do luto foi, de maneira insidiosa, se infiltrando em tudo.
A CLT nos garante dois dias de licença. No terceiro dia o(a) profissional volta para sua rotina. Há uma espécie de pacto tácito que silencia o luto no ambiente corporativo. Uma expectativa de que o(a) colaborador(a) “siga em frente” rapidamente, sem espaço para o processamento dessa perda. Estudos acadêmicos que analisam a relação entre o luto e a produtividade apontam que essa “repressão” ao luto pode prolongá-lo e ter impactos negativos duradouros na produtividade.
Por ser um evento complexo, com profundas repercussões psicológicas, o luto afeta nossa capacidade funcional. Fui a uma consulta médica e expliquei como meu sono estava alterado, como sentia cansaço o tempo todo, e como estava particularmente difícil me lembrar de informações, fatos ou algo que eu estivesse tentando aprender. A médica me perguntou se eu não conseguiria tirar uma licença no trabalho. Respondi que minha chefe era muito responsável e comprometida com os clientes e que não queria deixar de cumprir compromissos assumidos. Nós rimos, pois eu sou a minha própria “chefe”. A verdade é que precisei ajustar a minha rotina ao que sou capaz de realizar agora.
Aumento da expectativa de vida traz a questão à tona
Fiel à minha intenção de verificar como diferentes inteligências artificiais podem enriquecer nossa aprendizagem, perguntei à SciSpace, uma plataforma de pesquisa científica que utiliza IA para auxiliar pesquisadores, estudantes e autores em suas tarefas, quais impactos o luto poderia ter no ambiente corporativo. A resposta:
“O sofrimento relacionado com o luto e as memórias intrusivas descritas em vários estudos aumentam plausivelmente a carga cognitiva e competem pela capacidade da memória de trabalho, o que pode retardar as decisões e reduzir a eficiência na resolução de problemas”.
O quanto estamos preparados, como sociedade, para lidar com o luto?
Com o aumento da expectativa de vida e com a queda da fecundidade, a população com mais de 65 anos saltou de 4% no ano 2000 para 11% em 2024 (estimativa). A projeção do IBGE é de que até 2050 esse grupo etário representará 20% da população. Estamos envelhecendo e, a partir de 2042, é esperado que a população comece a diminuir. Já estamos trabalhando até idades mais avançadas e a tendência é o aumento da vida laboral, tanto pelos fatores já citados de envelhecimento da população e de queda da fecundidade quanto à mudança das regras previdenciárias.
Sem dúvida, o aumento da vida laboral traz para o ambiente corporativo a temática do luto: profissionais 50+ apoiam pais idosos e, não raro, enfrentam perdas significativas. Além disso, colaboradores sêniores também estão mais propensos a adoecer e vir a falecer, impactando colegas e equipes. Como cuidar desses profissionais enlutados? Chaplin, no seu clássico O Grande Ditador de 1940, cunhou a frase “não sois máquinas, homens é que sois”. O que isso significa quando transpomos essa ideia para as organizações de 2025?
Caminhos para minimizar o impacto do luto
Na pesquisa de revisão de literatura da SciSpace, fica evidente a importância que as artes e a autoexpressão adquirem no apoio à elaboração do luto: “as atividades expressivas relatadas na literatura podem reduzir a preocupação emocional e melhorar o funcionamento”. Os estudos analisados sugerem alguns caminhos:
- Intervenções expressivas, como escrita, música e arte, são repetidamente relatadas como capazes de melhorar a expressão emocional e o funcionamento, e, portanto, podem reduzir a ocupação cognitiva do luto e ajudar a restaurar a capacidade de trabalho;
- Acomodações práticas no local de trabalho consistentes com essas descobertas incluem permitir a segmentação de tarefas, reduzir atribuições ininterruptas de alta carga cognitiva durante o luto agudo e facilitar o acesso a apoios expressivos/terapêuticos.
Como o RH orienta líderes com colaboradores enlutados? Como acolhe profissionais nesse processo? Que “acomodações práticas” fazem parte do repertório de sua organização?
Felizmente o tratamento do luto nas empresas brasileiras tem se movido de uma abordagem puramente legalista (os dois dias da CLT) para uma abordagem mais voltada à saúde emocional e ao acolhimento, reconhecendo que a dor da perda afeta diretamente a capacidade cognitiva e o bem-estar do profissional. Práticas humanizadas de acolhimento e suporte têm se tornado, cada vez mais, parte das políticas de RH das organizações. Ações como extensão da licença e flexibilidade da jornada de trabalho, suporte psicológico (como terapia e rodas de conversa), gestos de solidariedade e apoio das lideranças são fundamentais para a restauração do bem-estar emocional dos colaboradores enlutados. O apoio das lideranças diretas é, sem dúvida alguma, fundamental. Orientar gestores de pessoas para que expressem condolências sinceras (sem frases clichês como “seja forte”), evitem pressionar o retorno à produtividade máxima imediatamente e redefinam e redistribuam temporariamente as tarefas do enlutado são ações simples que podem ser implementadas facilmente.
Sabemos que a relação líder-liderado(a) é fundamental para o engajamento dos colaboradores e que políticas de RH são importantes para reforçar cultura. Entretanto, uma citação que é um dos pilares da Psicologia Analítica de Jung e da prática clínica humanizada, enfatiza a importância da relação genuína sobre o conhecimento técnico, e cabe perfeitamente ao caso em questão: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”. É um chamado à humanidade e à simplicidade no ato de cuidar e se relacionar, tanto para o RH quanto para os líderes.
Que cada organização se pergunte: estamos preparados para acolher o luto de nossos colaboradores com a mesma seriedade com que tratamos metas e resultados? O futuro do trabalho exige não apenas eficiência, mas também humanidade.
Home office: vigilância cresce, mas produtividade não depende de monitoramento
Salários e carreiras: saiba o que esperar do mercado de RH em 2026
Você é altamente criativo? Sim, é um gênio em potencial. Saiba por quê
Insatisfação com o próprio bem-estar aumenta entre os brasileiros, mostra estudo
As Melhores Empresas para (se) Bem-Estar: os vencedores







