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Minimalismo digital: por uma vida mais simples – e offline

Conheça a filosofia que promete agir na contracultura do nosso mundo hiperconectado, trazer relações de trabalho mais profundas e uma existência mais plena.

Por Sofia Kercher
Atualizado em 2 dez 2024, 13h49 - Publicado em 28 nov 2024, 15h41
Ilustração, em fundo degradê roxo, com três retângulos remetendo ao formato de smartphones.
 (Arte/VOCÊ RH)
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Quatro horas e 30 minutos. Esse foi o tempo que passei diariamente no meu celular na semana que antecedeu a escrita desta reportagem. Não é dos mais altos – a média brasileira é de 9 horas e 32 minutos. Nós somos o segundo país que mais esbugalha os olhos para uma tela, perdendo o pleito apenas para a África do Sul (por singelos 16 min). Isso significa que, das 16 horas que ficamos acordados por dia, em média, mais da metade é encarando a caixinha eletrônica. A média global é de 6 horas e 58 minutos por dia, cerca de 40% do total desperto.

Você pode achar que eu compartilhei esse número para me martirizar. Longe disso. Acontece que, para além dessa caixinha, tenho uma caixa maior: o computador. Onde escrevo estas palavras e, segundo o Windows, onde eu passei 8 horas e 50 minutos por dia útil na semana passada. As do expediente, claro, mais um chorinho. Um vídeo de receita, uma passada pelo renascido X, uma burocracia final do TCC (me deseje sorte).

Dado que eu durmo às 23h30 e acordo às 7h30, isso significa que, na teoria, passo 83,31% do meu dia conectada. Mas não se preocupe, há grandes chances de ser um pouco menos: em muitos momentos do dia, me pego olhando para AS DUAS telas. Simultaneamente. Você deve estar boquiaberto por aí. Eu também fiquei. Especialmente porque eu me importo, mesmo, com o tempo que passo usando eletrônicos. Sou um pouco bitolada, até. Não tenho redes sociais no meu telefone, tenho limite de uso nos aplicativos. Achei que isso me abstinha do vício, me colocava em um pedestal low-profile. Seguro dizer que tomei um balde de água virtual e gelado na cabeça.

A boa (ou má?) notícia é que sei que não estou sozinha. 70% da população mundial tem acesso à internet de alguma forma – mais da metade dela tem ao menos um telefone em mãos. E isso, cientificamente, tem relação direta com a deterioração da qualidade do nosso sono, com o crescimento estratosférico dos índices de depressão e ansiedade (especialmente da juventude), o aumento dos transtornos alimentares, de problemas nos olhos, coluna, pescoço, punhos… enfim. Uma batelada martirizante de consequências ao corpo e ao espírito.

Quando olhamos para o escritório, há outro aspecto em que as minitelinhas fincam suas garras: a produtividade. Um estudo feito em 2020 pela consultoria de wellness  digital Screen Education revelou que os trabalhadores gringos gastam mais de duas horas e meia por dia de trabalho no celular. Ainda, estima-se que checamos nossos aparelhinhos 150 vezes por dia (a cada 6 minutos, aproximadamente). As notificações que vêm dos nossos aplicativos travam batalha ferrenha pela nossa atenção – e, pelos dados, dá para ver que quem está perdendo somos nós.

“Qualquer hábito comportamental não consegue simplesmente ser interrompido quando batemos o ponto”, explica Edwiges Parra, professora da FGV e psicóloga especialista em saúde mental digital. Vamos entender por que isso acontece – e o que fazer para reverter esse cenário.

Ilustração, em fundo degradê laranja, com três retângulos remetendo ao formato de smartphones.
Edwiges Parra, psicóloga especialista em saúde mental digital: “Qualquer hábito comportamental [como o apego às redes sociais] não consegue ser interrompido quando batemos o ponto”. (Arte/VOCÊ RH)
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Não existe dopamina grátis

A frase é do Alexandre Versignassi, antigo editor da revista Superinteressante, ao destrinchar o vício em cigarro em uma reportagem de 2019. Ele explica que, conforme você acostuma o cérebro com essas doses contínuas de alívio, os neurônios ficam mimados: passam a berrar por nicotina o dia todo. Está montada a cama do vício.

A diferença é que, em vez de viciar você com uma substância química, o quadradinho salafrário que está no seu bolso (ou nas suas mãos neste exato momento) usa de duas outras artimanhas para se fazer essencial aos seus neurônios: o reforço positivo intermitente e o estímulo da necessidade de aprovação social. Vamos destrinchar cada uma a seguir.

As recompensas são muito mais atraentes quando dadas de forma imprevisível, e não obtidas por um padrão conhecido. Esse é um fato científico conhecido desde os anos 1970. Cortesia do cientista Michael Zegler, que elaborou um experimento em que botões liberavam arbitrariamente comida às cobaias (nesse caso, pombos). No esquema caça-níquel de ração, os bichinhos obtinham níveis maiores de dopamina. Bingo.

No celular, essa imprevisibilidade vem, em grande parte, das redes sociais. Quando você posta uma selfie na praia, não sabe quem vai curtir, comentar ou compartilhar a publicação. Cada vez que recebemos esse feedback positivo (em forma de uma batelada de notificações), há uma descarga significativa de dopamina.

Isso não é exclusivo das redes. Você pode entrar em um site para checar a previsão do tempo e, quando se dá conta, está lendo sobre a possível gravidez de alguma subcelebridade coreana – sem nem ter descoberto se precisava levar um guarda-chuva para sair de casa ou não. Nosso celular é uma máquina de criar situações de ganho imprevisíveis. E, claro, de nos viciar nelas.

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A segunda artimanha dá para remontar, não ironicamente, ao Paleolítico. Era fundamental que a gente cultivasse uma relação social com os outros membros da tribo – garantindo nossa sobrevivência. Corta para 2024, nossas redes cumprem exatamente esse papel de busca pela aprovação alheia. Se o seu amigo não curtiu sua foto de paisagem, ele deve te odiar. Se o seu vizinho charmoso curtir a mesma foto, ele deve estar apaixonado por você. E por aí vai.

Sabemos que, em um primeiro momento, trazer a comparação com a reportagem do Versi pode parecer radical. De fato: se você ficar uma semana sem telefone, é difícil que sua vida se transforme em uma cena do filme Trainspotting. O que não quer dizer que não seja um vício. Comportamental, mas um vício. Não à toa, em 2013, a Organização Mundial da Saúde o reconheceu como uma patologia – assim como reconhece a dependência química. Bem resume Bill Maher, apresentador da HBO, em 2017: “A Philip Morris só queria seus pulmões. A App Store quer sua alma!”.

A contracultura

Antes que peçamos para a Alexa tocar a última trombeta do apocalipse, há uma filosofia que está na vanguarda dessa problematização. Entra em cena Cal Newport, professor de ciências da computação na Universidade de Georgetown, nos EUA. Em seu livro Minimalismo digital: Para uma vida profunda em um mundo superficial, ele destrincha uma série de hábitos que buscam transformar nosso período online em um momento “dedicado a uma pequena quantidade de atividades, cuidadosamente selecionadas e otimizadas”.

Newport estabelece três princípios que todo minimalista digital deve seguir. Um: a bagunça custa caro. Dispositivos, apps e serviços desviam nosso tempo e atenção, e têm um custo negativo que neutraliza os eventuais benefícios isolados. Dois: a otimização é importante. Para extrair os benefícios dos equipamentos, é necessário traçar uma estratégia de como usá-los direito. E três: consciência gera satisfação. Os minimalistas digitais se satisfazem com o compromisso de serem mais conscientes com essas tecnologias.

Ao longo da obra, ele traz uma batelada de boas práticas para o leitor trilhar um caminho mais minimalista. Ele também enfatiza a importância da definição de um cronograma de ação: para ele, o ideal são as boas e velhas quatro semanas.

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Ilustração, em fundo degradê roxo, com três retângulos remetendo ao formato de smartphones.
O especialista Cal Newport estabelece três princípios do minimalismo digital: a bagunça custa caro; a otimização é importante; e consciência gera satisfação. (Arte/VOCÊ RH)

Edwiges Parra também tem sua série de dicas para implementar o minimalismo: especialmente voltada aos dias úteis da semana. A especialista recomenda que se faça algo chamado “exame de consciência diário”. Mais ou menos o que eu fiz lá no comecinho desta reportagem. Ao final de todo dia, ela indica que você abra seu tempo de uso, anote os aplicativos em que mais passou tempo e quantos eram por motivos de trabalho. “Desse balaio, quais atividades te nutrem e quais te desgastam?”, questiona a especialista. Fazendo esse raio X inicial, fica mais palpável restaurar, aos pouquinhos, o foco, a atenção e a produtividade.

Essa intencionalidade também vale durante o expediente. Precisa se concentrar em uma tarefa e vai ficar fora do WhatsApp, Slack, Teams & derivados? Avise seus colegas e seu gestor. “As pessoas estão cada vez mais impacientes, demandam nossa atenção imediata. Quando negociamos a atenção dos nossos colegas, eles passam a respeitar mais os nossos momentos de concentração”, argumenta a professora Edwiges.

Tudo isso resume uma mentalidade chamada mindfulness digital. É quando se tem a clareza do porquê e por quanto tempo você usa seus aparatos tecnológicos. Mais do que isso: para que você genuinamente perca o interesse nas telas. E que, no seu momento de lazer ou de tédio, decida fazer qualquer outra coisa além de abrir o TikTok.

Vive la resistance!

Antes de todos irmos tocar na grama, é preciso entender duas coisas.

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Primeiro: usar muito o celular não é uma falha de caráter. Você não é fraco, preguiçoso ou uma pessoa ruim porque se pegou mexendo no Instagram no meio do casamento de uma amiga. Ou porque não prestou atenção no que seu avô lhe disse porque estava no WhatsApp. Tampouco é um profissional menos capacitado porque involuntariamente abriu o X em meio a uma reunião de resultados. Essas coisas acontecem com todos nós. Bilhões de dólares foram investidos justamente para que isso se tornasse inevitável.

Dito isso: ninguém vai salvar você. Enquanto as políticas públicas e a opinião popular não rumam a favor do minimalismo digital, o caminho para uma vida mais significativa, com conexões mais humanas e colunas menos doloridas depende única e exclusivamente de você. E, a não ser que façamos um esforço ativo para nos desvencilharmos de vez do vício, estaremos fadados a números cada vez mais assustadores de tempos de uso. E de sabe-se quantos outros problemas de saúde mental e física.

Por isso, fica o convite. Comece a passos pequenos, siga a recomendação dos especialistas. É o que eu pretendo fazer – depois da apuração desta reportagem, troquei meu telefone de última geração por um antigo, funcionando em modo carroça. Algumas inconveniências à parte, me sinto genuinamente mais completa, disposta e mais conectada com os queridos à minha volta. Afinal, talvez a mais clara evidência do minimalismo digital sejam os amigos que fazemos pelo caminho.

TORNANDO-SE UM MINIMALISTA DIGITAL

Confira as dicas de Cal Newport e Edwiges Parra.

  • Transforme seus dispositivos em computadores de uso específico (exclusivamente para estudos, trabalho ou lazer).
  • Busque atividades que exijam interações sociais e estruturadas do mundo real (esportes, leituras, cerâmica…).
  • Comece a sair de casa sem levar o celular consigo (ou deixando-o no carro).
  • Delete os aplicativos de mídias sociais do seu smartphone.
  • Use e abuse do modo silencioso (exceto para ligações em caso de emergência).
  • Almoce longe das telas, seja em casa ou no escritório.
  • Deixe claro aos colegas de trabalho quando precisa se concentrar em alguma atividade.
  • Escolha um horário e tempo máximo para responder mensagens e checar a internet.
  • Desligue o celular uma hora e meia antes de dormir.
  • Considere substituir seu smartphone por um telefone sem internet.
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Este texto é parte da edição 95 (dezembro e janeiro) da Você RH, que chegará às bancas na próxima sexta-feira (6). Acompanhe nosso site e nossas redes sociais para não perder o lançamento.

*Erramos: a versão original desta reportagem dizia que a reportagem de Alexandre Versignassi foi publicada na revista Superinteressante em 2018. O ano correto é 2019.

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