Esta reportagem faz parte da edição 73 (abril/maio) de VOCÊ RH
Vivemos um paradoxo: nunca estivemos tão conectados e, ao mesmo tempo, tão sozinhos. As interações constantes via celular ou redes sociais, a forte polarização e o medo constante (de contaminação, da violência, de perder o emprego) têm levado as pessoas a se recolher cada vez mais, paralisando as relações e aumentando a distância entre nós. Não se trata de um cenário gerado pela pandemia, mas que certamente foi agravado pela crise do coronavírus.
No estudo Percepções dos Impactos da Covid-19, do Instituto Ipsos, que ouviu participantes em 28 países, o Brasil é o local onde as pessoas mais se sentem solitárias: 50% das que responderam à pesquisa têm essa sensação. Turquia (46%) e Índia (43%) vêm na sequência. Para 52% dos brasileiros, a pandemia aumentou o sentimento de solidão (a média global é de 41%), e para 46% teve reflexo negativo na saúde mental.
Considerada um sintoma do nosso tempo, a solidão faz parte da vida e pode nos atingir em diversos momentos, sobretudo naqueles que demandam adaptação a algum tipo de transição, como uma separação, a morte de alguém próximo ou uma mudança de cidade ou de emprego. Nessas situações, é normal sentir-se isolado com as próprias dores.
A experiência da solidão é totalmente subjetiva; não tem definição fácil nem contornos definidos. Não é simplesmente estar sozinho, algo que pode ser encarado com felicidade por muitas pessoas que precisam de um tempo só para si. A falta de companhia se torna um problema quando envolve tristeza, melancolia, medo, sensação de vazio e vergonha — muito por causa da percepção socialmente errada de que se alguém está sozinho é porque fracassou.
Mas a solidão também é feita de sensações mais difusas. “Tem a ver com desamparo, com a sensação de não pertencimento, de não ser importante para ninguém e de não ter com quem contar”, diz Elson Asevedo, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Além disso, é importante distinguir entre o isolamento físico (que é, objetivamente, o que vivenciamos na pandemia) e o isolamento afetivo (que traz a sensação de estar solitário). “A falta de relacionamentos significativos é a principal causa da solidão”, diz o psiquiatra.
As faces do problema
A solidão se tornou pauta de saúde pública em países como Canadá, Austrália e Dinamarca, que vêm criando campanhas e alianças para a formulação de políticas com foco na redução de danos à saúde física e mental ligados ao isolamento. No Reino Unido, onde 9 milhões de pessoas (quase 15% da população) declararam se sentir sozinhas a maior parte do tempo, foi criado o Ministério da Solidão, em 2018, com foco em endereçar ações para aliviar o peso que ela impõe à vida das pessoas e ao sistema de saúde. Afinal, solidão não é doença, mas é considerada fator de risco para várias.
Pesquisas científicas indicam que pessoas que se sentem solitárias têm risco maior de desenvolver transtornos de ansiedade, depressão, distúrbios do sono e dor crônica. Um estudo de 2016 da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, relacionou a solidão a um aumento de 30% no risco de ter doenças do coração ou um acidente vascular cerebral.
Em uma pesquisa da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, conhecida por ser a mais extensa já realizada sobre longevidade — mais de 700 participantes foram acompanhados ao longo de
75 anos —, os pesquisadores descobriram o segredo das pessoas que vivem muito: cultivar relacionamentos sólidos e felizes. “Boas conexões sociais são um fator protetor da saúde, enquanto a solidão e as relações tóxicas encurtam o tempo e a qualidade de vida”, diz o psiquiatra Robert Waldinger, diretor do estudo, em sua palestra no TED em 2017.
Para o psiquiatra Elson, o isolamento afetivo, quando se torna crônico, representa um risco à saúde porque dificulta a adoção de rotinas saudáveis e afeta a motivação pessoal para se cuidar. “Manter relacionamentos verdadeiros é tão importante para a saúde integral quanto ter uma alimentação equilibrada, praticar atividade física, não fumar nem abusar do álcool. Trata-se de um dos pilares da medicina do estilo de vida, uma nova abordagem médica que se foca na adoção de bons hábitos como uma forma de prevenção e tratamento de doenças ligadas ao estilo de vida [como as cardiovasculares, a obesidade e o câncer], que são cada vez mais prevalentes”, diz.
Importante destacar que a solidão não é uma vilã e pode ser uma experiência bastante positiva. “Quando a pessoa não precisa buscar válvulas de escape para evitar ficar na própria companhia, a solidão é saudável e serve ao autoconhecimento e ao crescimento pessoal”, diz Desirée Cassado, psicóloga especializada em terapia comportamental na The School of Life Brasil. É uma vivência de solidão que favorece a contemplação, a criatividade e a inovação, como afirma o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han no livro Sociedade do Cansaço (Editora Vozes, 35 reais).
Todo mundo sofre
Motivado pela crescente atenção que o tema solidão ganhou no mundo — no Fórum de Davos de 2019 foi centro de discussões pelo impacto que representa na saúde física e mental de todas as gerações e, portanto, nas sociedades e economias —, o escritor Celso Grecco, fundador da Atitude Pensamento Estratégico, conduziu a pesquisa Projeto Solidão, em fevereiro de 2020. Foram entrevistadas 2.010 pessoas com o objetivo de entender as causas desse estado emocional e conscientizar para a importância de reconhecer o peso da solidão na vida dos brasileiros.
Partindo de insights entregues pelos próprios participantes do estudo, Celso chegou a sete fatores principais que, isoladamente ou em conjunto, contribuem para que uma pessoa se sinta sozinha — a que ele chamou de espectros da solidão. Além disso, a pesquisa mapeou o sentimento com a crise da covid-19. Antes da pandemia, 50% dos entrevistados diziam que já haviam sofrido com a solidão. Depois da pandemia, o sentimento se agravou para 61% das pessoas. “A pandemia aprofundou o mal-estar e trouxe à tona a preocupação com a solidão e seus efeitos, mas a verdade é que já existia uma epidemia de solidão em curso muito antes de entrarmos em isolamento social”, diz Celso. E são os jovens a população que mais sofre com o problema: de acordo com as informações colhidas por Celso, a faixa etária de 18 a 24 anos é a que se sente mais vezes sozinha.
Assim como no Projeto Solidão, os dados que surgem de outras pesquisas sobre o tema surpreendem ao mostrar que nem sempre os idosos — o clichê da solidão — são os que padecem por estar sozinhos. A verdade é que não existe uma faixa etária que mais se sente assim no mundo de hoje; todos encaram o problema em alguma medida. Na pesquisa britânica BBC Loneliness Experiment, de 2018, um terço dos 55.000 entrevistados ao redor do mundo disse se sentir solitário a maior parte do tempo. Entre os que têm de 16 a 24 anos o índice foi de 40% e, entre os adultos acima de 75 anos, foi de 27%. Em uma pesquisa de 2020 do Grupo Consumoteca, 32% da geração Z (com até 26 anos hoje) disse se sentir muito sozinha durante a pandemia e o isolamento social.
Se para os mais velhos e aposentados pesam a perda de identidade social conferida pelo trabalho, a angústia de se sentirem ultrapassados e, em muitos casos, o abandono e a negligência da família, os millennials e a geração Z têm o domínio da tecnologia a seu favor para se comunicar, mas sofrem por não contarem com redes de apoio reais e com laços afetivos sólidos. A pouca idade também pode significar falta de ferramentas de autoconhecimento e equilíbrio emocional para lidar com as dores e a insegurança que são, ao mesmo tempo, causa e consequência da solidão.
Com boa parte dos empregados na faixa dos 25 anos e sabendo da dificuldade de muitos para falar das próprias angústias com os pais e os colegas de trabalho, a área de RH da transportadora digital Vuxx aposta na construção de uma relação de confiança para que eles se abram sobre suas aflições. Para isso, CEO, gestores e equipes se reúnem periodicamente para interagir e alinhar expectativas. Valéria Nunes, gerente de RH da Vuxx, explica que foi criado um programa de mentoria virtual, que atende todas as áreas e cargos, para sanar dúvidas sobre os rumos individuais da carreira e a sensação de estagnação que muitos estavam vivendo devido ao distanciamento físico — a percepção foi levantada nas avaliações periódicas de satisfação. Também foram criados eventos virtuais para aliviar o peso do isolamento, como happy hour mensal, café da manhã semanal e amigo-secreto de guloseimas. “Manter uma comunicação eficiente traz proximidade, alivia a ansiedade e outras dores que muitos estão vivendo neste momento”, afirma Valéria.
A pesquisa Projeto Solidão, feita pelo consultor e escritor Celso Grecco com 2.010 pessoas no Brasil, mapeou as sensações que pioram o isolamento
1. Inadequação
Envolve a sensação de não pertencer, de estar excluído ou não se ver representado onde circula e de ter que “vestir uma máscara” para fazer parte do grupo. Tudo isso dificulta a construção de vínculos afetivos e de confiança. Nas empresas, manter-se vigilante e coibir a prática de assédio e bullying, assim como criar políticas de diversidade para incluir e melhorar as condições de trabalho de mulheres, negros, pessoas LGBT+, com deficiência e profissionais de diferentes gerações, por exemplo, é um caminho sem volta para garantir a segurança psicológica dos funcionários e a sustentabilidade do negócio.
2. Abandono
Afeta principalmente os idosos (que podem se sentir um fardo para a família), as crianças e os jovens (que se ressentem da falta de tempo e atenção dos pais, sempre mergulhados no trabalho ou no celular). A hiperconexão, aliás, é fator de risco para a desconexão emocional e o desamparo frequentemente associados à solidão. Isso porque convida ao isolamento, dificulta a interação social e o reconhecimento das emoções próprias e dos outros.
3. Redes sociais
São um lugar de encontro, mas também empurram para a solidão porque fomentam a comparação e o julgamento, espalham positividade tóxica e reforçam o culto às conquistas individuais e ao sucesso a qualquer custo, gerando sentimentos de inferioridade e inadequação. Na análise de Celso, até os serviços de streaming de filmes e músicas, vistos como salvação em tempos de distanciamento físico, contribuem para o estado de solidão uma vez que criam a ilusão de preenchimento da vida e do tempo vazio com informações e emoções de toda sorte, convidando ainda mais ao recolhimento.
4. Relação com tempo e espaço
A velocidade da vida urbana, a imposição do imediatismo, de ter que fazer muitas coisas ao mesmo tempo e se adaptar rapidamente a tantas mudanças deixam a sensação de nunca dar conta, de estar para trás, desatualizado. Isso coloca o corpo e a mente em estado de alerta constante, vivendo no automático, olhando para todos os lados e esquecendo de observar a si mesmo e a seu entorno próximo.
5. Insegurança
Com toda a instabilidade do mundo BANI (frágil, ansioso, não linear e incompreensível, traduzido da sigla em inglês), a covid-19, a crise profunda no país e a polarização das discussões, é natural que o brasileiro enxergue ameaças por toda parte. Além da percepção de estar desprotegido e de ter que se virar sozinho, há o medo de se expressar e de ser massacrado por suas opiniões. Para não passar por isso, é comum acabar mais isolado.
6. Irrelevância
Relacionamentos superficiais e utilitários — como muitas vezes são os nutridos nas redes sociais e no ambiente de trabalho — geram sentimentos de invisibilidade e insignificância. Surge a sensação de não fazer diferença para a vida do outro e de não ter com quem contar. No contexto profissional, a percepção de ser apenas um número ou uma peça do negócio, além da falta de reconhecimento e de autonomia, derruba a autoestima, o engajamento e a produtividade.
7. Ansiedade de performar
Do ponto de vista dos indivíduos, essa ansiedade está ligada ao mito da produtividade, à supervalorização do sucesso e das realizações individuais, ao medo de errar e de mostrar vulnerabilidade. E, do lado das organizações, é representada em modelos de gestão baseados em cobrança e controle, nocivos para as relações e para a felicidade porque pressionam o indivíduo e o desencorajam a expressar opiniões e vontades. Quem mais sofre com isso são os jovens: 50% dos pesquisados de até 25 anos disseram que se cobram demais para realizar seus objetivos e acertar sempre. Nas outras faixas etárias, o índice foi de 45%, em média.
Tempo de cuidar
As empresas, pelo enorme papel social que têm e pela responsabilidade no cuidado com os funcionários, devem agir neste momento tão delicado. “É preciso naturalizar as conversas sobre saúde mental, monitorar como as equipes estão se sentindo e educar as pessoas para a importância de desenvolver autoconhecimento e competências socioemocionais, fundamentais para lidar com os desafios do mundo de hoje e do futuro, inclusive a solidão”, explica a psicóloga Ana Carolina Peuker, CEO da Bee Touch, que faz avaliações psicológicas para pessoas e empresas.
O Itaú Cultural está tomando esse cuidado. Assim que foram decretadas a pandemia e a necessidade de isolamento social, a área de recursos humanos quis entender como cada funcionário poderia ser afetado pela situação atípica. Nas reuniões online semanais para tratar de projetos, programação do espaço e outras questões do dia a dia de trabalho, chefes e equipes falavam também das aflições que cada um vinha enfrentando no home office. Os insights orientaram a criação de ações voltadas para o bem-estar. “Organizamos rodas de conversa sobre gestão do tempo, educação online dos filhos e temas ligados à saúde mental, como exaustão e ansiedade, meditação e terapias alternativas”, diz Érica Buganza, gerente de RH. Além disso, os treinamentos e a festa de fim de ano continuaram acontecendo, no formato remoto. De uma pesquisa feita para avaliar a relação com o home office veio a constatação de que muitos sentiam falta de ir ao escritório físico — alguns por não contarem com estrutura adequada para trabalhar em casa, outros porque estavam sentindo o peso do isolamento. “Para aumentar o bem-estar, controlamos a ida à sede limitando aos casos realmente necessários, para não haver aglomeração”, diz Érica.
Atenção constante
As oportunidades para criar conexão entre os colegas no trabalho — tanto no trabalho remoto quanto no retorno gradual ao escritório físico — é algo para o qual o RH precisa atentar constantemente durante essa pandemia. ”O resgate do convívio com o uso de ferramentas digitais e a volta aos poucos ao trabalho presencial podem diminuir os efeitos da solidão na saúde física e psicológica, mas teremos que reaprender a nos relacionar para deixarmos de nos sentir tão sozinhos”, diz Celso.
Na Superlógica, empresa que desenvolve softwares de gestão financeira, esse desafio é frequente — ainda mais porque o time está gostando da experiência do trabalho à distância. “No último ano, sabendo que a maior parte estava satisfeita com o home office, embora sentindo falta da interação com os colegas, a preocupação foi evoluir a cultura da empresa para o ambiente remoto, e assim manter aceso o senso de afeto e de pertencimento, mesmo de longe”, diz Alexandre Norberto Rodrigues, COO e diretor de RH. Um passo inicial foi a criação de um aplicativo próprio para reunir as pessoas por grupos de interesses — vinhos, séries e animais de estimação, por exemplo — e incentivar trocas. O expertise em organização de eventos foi usado para realizar festa de fim de ano, saraus e apresentações online em que as atrações são os próprios funcionários mostrando seus talentos. Eles também passaram a utilizar uma plataforma, originalmente usada por quem joga videogame, para otimizar o trabalho em equipe, agilizar a comunicação e compartilhar conteúdos, palestras, vídeos e fotos.
Criar essa descontração é também a aposta da startup de mobilidade Quicko, que teve metade da sua força de trabalho contratada à distância durante a pandemia. Mantendo 100% do time remoto há um ano e sabendo que a maioria dos funcionários mora sozinha, a empresa pensou em ações que ajudassem a firmar conexões, como a pausa para o café (virtual). O momento, sagrado em praticamente todos os ambientes de trabalho, acontece agora por videoconferência. Happy hours e eventos como festa junina, Halloween e Carnaval também foram feitos à distância, com direito a kit fantasia e bebidas enviadas pela empresa para a casa dos empregados. “Acaba sendo uma maneira de descontrair, apresentar os mais novos e incentivar a integração”, afirma Luciana Ferreira, gerente de pessoas. Em uma plataforma de gestão de trabalho em equipe, o time criou grupos de compartilhamento de receitas, músicas, filmes e outros interesses. “Estimulamos a constante troca entre os funcionários, inclusive de talentos. Um de nossos gestores, por exemplo, dá aulas de ioga online uma vez por semana”, conta Luciana.
Como você está?
A chave na construção de ambientes e rotinas que façam as pessoas se sentirem pertencentes e menos isoladas está na liderança. São os gestores que, no dia a dia, interferem mais para manter as equipes unidas e os indivíduos satisfeitos. Mas essa tarefa tem se mostrado complexa na pandemia. “Quando pergunto àqueles que estão liderando à distância se vêm ligando para as equipes para saber como elas estão, a maioria diz que não”, diz Renata Rivetti, diretora da Reconnect, consultoria especializada em felicidade no trabalho. “Os líderes acompanham os resultados e se comunicam por e-mail e mensagens, mas não sabem o que as pessoas estão passando. É preciso entender que confiar na liderança é essencial para a alta produtividade e o comprometimento.”
Isso porque a felicidade no trabalho está relacionada a como as pessoas se sentem, e não necessariamente ao que recebem da empresa. Se estiverem solitárias, o sentimento irá se refletir nas atividades do trabalho e poderá gerar problemas de engajamento, entregas e desenvolvimento profissional. “Mais importante do que um bom salário, bônus ou ajuda para montar o home office, o que muitos profissionais querem é perceber que pertencem à empresa e que seu trabalho tem um significado”, diz Renata. Sempre essencial lembrar que faz parte do papel do RH — e de todos os líderes — promover culturas positivas e psicologicamente saudáveis, em que os profissionais saibam que são vistos como pessoas, com suas subjetividades e vulnerabilidades, e não como instrumentos usados para bater metas.
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