Assédio internacional aos talentos
Empresas estrangeiras estão atrás de profissionais brasileiros. E isso acirra ainda mais a disputa por colaboradores num mercado já escasso de mão de obra.
Após 17 anos de carreira na indústria automotiva, a engenheira Ana Carolina Sorbo quis ampliar os horizontes. Com bagagem nos mercados latino-americano, norte-americano e asiático, ela tinha um alvo em mente: a Europa. Trabalhar no continente, pensava ela, seria uma boa estratégia de crescimento profissional e pessoal – a qualidade de vida do Velho Mundo, é claro, contava pontos.
Até que o grande momento chegou: a engenheira recebeu dois ótimos convites para concretizar seu plano. Não houve contraproposta da montadora em que trabalhava que segurasse sua então head de gerenciamento de projetos. Em 2021, a engenheira embarcou para Munique, na Alemanha, onde assumiu o cargo de head de lançamento e expansão da Amazon. E ela não pretende voltar ao Brasil tão cedo.
A executiva faz parte de um contingente significativo de talentos assediados por empresas estrangeiras. Não se trata do processo de expatriar funcionários para outros países, como as multinacionais fazem há décadas. O fenômeno também não se refere às pessoas que emigram, na cara e na coragem, em busca de uma vida melhor. No cenário em questão, são os nossos profissionais que estão recebendo propostas concretas para atuar em companhias internacionais, em modelo presencial ou remoto.
“O mercado de atração de talentos está cada vez mais deixando de ser local para se tornar global”, aponta Lucas Toledo, diretor-executivo da consultoria de recursos humanos PageGroup. Embora não seja uma invenção da atualidade, a diáspora foi catalisada durante a pandemia de Covid-19. Com todo mundo trabalhando de casa e consumindo produtos e serviços online, a demanda por profissionais das áreas tecnológicas e digitais explodiu.
A necessidade de mão de obra especializada nesse campo é tão grande que despertou o desenvolvimento de políticas públicas em alguns lugares. O governo israelense estruturou, neste ano, um programa para atrair pessoas com alta qualificação em tecnologia. No Canadá, uma iniciativa para a contratação de estrangeiros recrutou mais de 32 mil trabalhadores entre abril de 2022 e março de 2023, sendo o Brasil uma das principais fontes de capital humano. Na mesma linha, países escandinavos estão oferecendo pacotes de residência para seduzir gente para esses locais.
E o Brasil fica na seca
Enquanto isso, nosso país terá um déficit de 530 mil profissionais em tecnologia até 2025, segundo um relatório divulgado em maio pelo Google em parceria com a Associação Brasileira de Startups (veja o quadro abaixo). Para tentar reduzir o abismo, a Associação Brasileira das Empresas de Software (Abes) criou, em 2022, a plataforma RHTech, com oferta de vagas e cursos gratuitos da Microsoft, IBM, Oracle, entre outras fontes. “A gente precisa fazer alguma coisa como país para melhorar a competitividade em termos de atração de mão de obra”, diz Jamile Sabatini Marques, gerente de fomento e inovação da Abes. Se já está difícil encontrar talentos, retê-los é um desafio ainda maior. O real desvalorizado aumenta a atratividade por salários em moeda forte. As ofertas internacionais chegam via headhunters, consultorias, redes sociais e softwares de recrutamento. “Teve um momento na pandemia em que as ofertas ficaram muito agressivas, porque havia uma abundância de venture capital ajudando as startups a crescer. Esse movimento diminuiu um pouco, mas ainda continua, sobretudo quando a gente fala de bons profissionais”, afirma Leonardo Ferraz, diretor de pessoas da ClearSale, empresa de tecnologia antifraude.
Em seus cálculos, dez dos 2.500 assalariados da companhia foram assediados por organizações gringas nos últimos anos. Pode parecer pouco, mas a perda de posições estratégicas representa uma ameaça em um mercado onde os talentos são disputados a tapa. “Alguns funcionários, nós conseguimos reter. Com outros, fomos transparentes em explicar que não havia o que fazer. Tinha gente com proposta para ganhar o dobro”, conta Ferraz.
Num dos casos, tratava-se de um brasileiro que morava no Canadá. Até aí, nenhum problema, uma vez que a ClearSale adotou o modelo remoto e não pretende voltar ao presencial. Só que, passados alguns anos, o colaborador preferiu mudar para um empreendimento local e receber em dólares canadenses – como competir? Em outra situação, a companhia tentava atrair um pesquisador para seu time de desenvolvedores. Quando o universitário estava prestes a assinar contrato, recebeu um convite de um concorrente na Califórnia e titubeou. Mas decidiu ficar no Brasil por causa da cultura, da perspectiva de carreira e da autonomia promovidas pela ClearSale.
Na maioria das situações, o que pesa na decisão de partir é mesmo o bolso. Segundo Ferraz: “As propostas, do ponto de vista de carreira, não costumam ser tão atrativas. Muitas vezes, é um sênior assumindo a posição de um júnior em outro lugar, mas ganhando mais por causa do câmbio”. Para evitar a fuga de talentos sem entrar em guerra salarial, a ClearSale desenvolveu um projeto junto com a SG Comp, consultoria especializada em remuneração.
Em 2021, quando a companhia entrou na bolsa de valores, somente 30 membros da alta gerência tiveram direito a cotas de ações como prêmio. A proposta foi ampliar o benefício para até 200 colaboradores, de qualquer nível hierárquico. “Se a pessoa tem um conhecimento-chave, alto potencial ou está no plano de sucessão, torna-se elegível ao programa”, explica Ferraz. Atualmente, os papéis da ClearSale contemplam cerca de 150 funcionários. Nesse grupo seleto, a retenção é duas vezes superior à do resto da organização.
Segundo Thamiris Morais, sócia da SG Comp, a medida vai além da questão patrimonial. “Tem um aspecto cognitivo envolvido, porque o colaborador se sente valorizado pela empresa”, diz. O diretor de pessoas faz coro: “A gente trabalha o envolvimento do líder para escolher os colaboradores, comunicá-los e celebrar a conquista com eles. Tudo isso gera mais engajamento”.
Por que o brasileiro é valorizado?
Embora o aumento salarial quase sempre faça a diferença nas ofertas de trabalho, esse não é o único motivador para o êxodo. Alexandre Benedetti, managing director da Talenses, consultoria especializada em recrutamento, aponta que a mudança acontece também por fatores intangíveis. “As razões que levam um profissional a fazer uma transição para o exterior são pessoais, profissionais e monetárias, além da perspectiva de médio e longo prazo, porque nos países desenvolvidos há mais segurança na carreira”, afirma.
Neste ano, a Talenses está em processo de recrutar mais de 30 profissionais brasileiros para duas companhias europeias, uma alemã e uma suíça, ambas do setor automotivo. Um dos projetos é um hub de tecnologia sediado em Portugal. Além do mesmo idioma, nesse caso, o brasileiro é valorizado por outras qualificações. “Nós temos fama de boa adaptabilidade e de bom relacionamento interpessoal com times multiculturais e multifuncionais. Também de que gostamos muito de trabalhar”, aponta Benedetti.
Mesmo que o canto da sereia seduza uma parcela dos colaboradores, o executivo da Talenses acredita que um funcionário feliz provavelmente vai ficar onde está, ainda mais se tratando de um passo tão arriscado quanto uma mudança para o exterior. “Se você tem um profissional engajado, ele pode até olhar o que tem lá fora, mas dificilmente vai sair”, diz. Lucas Toledo, do PageGroup, concorda: “Quem mais sofre são as empresas sem um bom clima interno ou aquelas com profissionais desengajados, independentemente de serem pequenas ou grandes” (veja no quadro abaixo). Companhias maiores têm RHs mais estruturados, com um leque de benefícios bem aberto para retenção de talentos. Por outro lado, é comum que, nas grandes, o colaborador se torne mais um número na planilha. Já organizações menores não costumam ter um sistema de recursos humanos tão robusto. Só que elas podem compensar essa desvantagem pela relação estreita com cada funcionário.
Segurança psicológica conta
Empresa de gestão de contratos de software e serviços online, a Brasoftware aposta no bom clima organizacional para reter seus talentos. Do ano passado para cá, quatro dos 270 colaboradores receberam ofertas para emigrar – três para Portugal e uma para a Suécia. Por enquanto, ninguém saiu. “Como a gente tem um canal muito aberto de comunicação, antes de qualquer decisão, as pessoas nos procuram. Não foram conversas em tom de barganha, mas de uma troca para entender o momento delas na empresa”, afirma Shirley Rodrigues, gerente de RH da companhia. “Olhando para o mercado, nós temos um ambiente interno muito saudável.”
Dois funcionários desistiram da mudança para a Península Ibérica quando a área jurídica da Brasoftware apontou a burocracia necessária para conseguir o visto de trabalho. A firma estrangeira não se responsabilizaria pela papelada. O terceiro colaborador assediado pela companhia portuguesa não enfrentaria esse problema, por ter passaporte europeu. Nesse caso, a medida para evitar sua saída foi transferi-lo de uma função técnica, com salário fixo, para uma área de negócios, onde agora ele recebe comissões.
Já a funcionária tentada a trabalhar na Suécia decidiu usar seu período de férias, durante a apuração desta reportagem, para conhecer o país. Se decidir manter o emprego brasileiro, terá um acompanhamento de carreira para se desenvolver por aqui.
Além da segurança psicológica, a Brasoftware aposta na capacitação dos profissionais como forma de retenção. Há seis anos, criou uma área responsável pela certificação dos colaboradores. A empresa banca cursos oferecidos pela Oracle, pela Microsoft e pela AWS, entre outros, como parte da jornada do trabalhador. Cada certificado, que custa de US$ 150 a US$ 5 mil, é emitido no CPF do profissional, não no CNPJ da empresa. Ou seja, se a pessoa sai da Brasoftware, leva a certificação com ela. Trata-se de uma aposta de risco, como parte da estratégia para criar vínculo com o time. Por enquanto, tem funcionado.
Should I stay or should I go?
Morar em um país seguro e ganhar em dólar ou euro é bom? Óbvio que sim, mas também tem seu lado negativo, como tudo na vida. Apesar de os rendimentos serem maiores em nações desenvolvidas, o custo de vida também tende a ser (principalmente o de moradia) – e, dependendo do país de destino, os impostos. “Depois que a pessoa ganha experiência em dois ou três anos no exterior, ela pode voltar ao Brasil e receber um salário que talvez não seja exatamente igual àquele, mas que valha mais, quando se coloca tudo na balança.” Outro ponto que pega é a adaptação da família ao novo endereço.
A engenheira Ana Carolina Sorbo concorda que nem tudo são flores. Apesar de trabalhar menos do que no Brasil, ela dedica três horas por dia na Alemanha, de segunda a sexta, ao estudo do idioma local. Além disso, precisa correr atrás de conhecimentos numa área que ainda não domina. “Às vezes, eu penso: estava tão bom, ganhava bem, estava acomodada e, de repente, me pus numa situação que é desconfortável todos os dias”, reflete. Mas ela não se arrepende. “É preciso estar em constante desenvolvimento.”
De fato, deixar uma situação estável para trabalhar em outro continente não é para qualquer um. Muito menos para quem é apegado à zona de conforto. Mas os atrativos que vêm de fora parecem cada vez mais irresistíveis. E essa realidade obriga os RHs daqui a, também eles, sair de uma situação confortável. É hora de ir à luta – com criatividade e benefícios que vão além da grana – para segurar o que há de melhor no talento brasileiro.