Como a disputa por talentos tech rompe a lógica salarial das empresas
A supervalorização de alguns profissionais está provocando distorções que prejudicam a cultura, a retenção e a longevidade dos negócios.

A inteligência artificial pode estar reescrevendo o futuro do trabalho, mas é nas planilhas de remuneração que o conflito mais silencioso está sendo travado. De um lado, profissionais com fluência digital, domínio de ferramentas de IA e visão de negócios se tornaram protagonistas na ambição de crescimento das empresas. De outro, áreas consideradas tradicionais enfrentam um novo dilema: como manter talentos e legitimidade institucional diante de uma lógica de valorização que escapa aos parâmetros históricos.
Segundo uma pesquisa de remuneração conduzida pela Comp em parceria com o Distrito, profissionais com competências ligadas à inteligência artificial recebem, em média, salários até 25% maiores. Mas essa diferença vai além do conhecimento técnico. Ela reflete uma nova economia simbólica dentro das organizações, que coloca algumas funções sob o holofote e empurra outras para os bastidores. Em conversas com executivos de RH de grandes empresas, é comum ouvir questionamentos como: por que um analista de dados recém-contratado recebe mais do que uma posição de coordenação com anos de casa? A resposta não está apenas nas práticas de mercado. Está em como a organização traduz valor estratégico em estrutura e reconhecimento.
A remuneração é apenas o sintoma. O problema começa muito antes, na arquitetura organizacional. Empresas que crescem rapidamente, especialmente startups em estágio de escala, costumam construir estruturas inchadas em áreas técnicas (principalmente em engenharia de software), com alta densidade de especialistas seniores e baixa coerência hierárquica. Isso pode acelerar entregas no curto prazo, mas fragiliza a cultura, compromete a retenção e dificulta a formação de talentos internos.
Nas big techs, que normalizaram essas distorções por anos, existe um esforço deliberado para reorganizar o caos gerado pelo crescimento acelerado. Salários não são mais apenas uma questão de atração, mas de coerência interna e sustentabilidade. Diferenças salariais entre áreas são esperadas em qualquer organização moderna. O problema começa quando essas exceções são tratadas de forma improvisada, sem critérios claros ou sem alinhamento com o planejamento de cargos, competências e estrutura.
Coerência na remuneração
As empresas comunicam suas prioridades por meio de seus investimentos. Áreas como engenharia, produtos, dados e segurança digital têm liderado os orçamentos de remuneração não apenas pela escassez de talentos, mas porque são vistas como impulsionadoras de crescimento. Quando áreas de suporte ao negócio ficam à margem desses investimentos, o impacto vai além da folha: afeta a cultura, compromete a retenção e mina a coesão interna.
E o discurso de “pessoas no centro” perde força quando as práticas de remuneração revelam outra realidade. Em muitas organizações, as áreas mais demandadas na narrativa institucional continuam operando com equipes enxutas e pouca densidade sênior. O RH, por exemplo, só poderá ocupar um papel realmente estratégico se for reposicionado com escopo técnico, domínio de dados e capacidade real de influenciar decisões de negócio.
Apesar da disseminação de bônus e programas de remuneração variável, ainda é comum que esses incentivos funcionem mais como um símbolo cultural do que como uma engrenagem real de performance. Em muitos casos, faltam metas claras, critérios objetivos e conexão direta com o impacto gerado. O resultado é um sistema pouco relevante, que não traciona comportamento nem orienta entregas.
Startups mais maduras já começam a aplicar múltiplos proporcionais à senioridade e à sofisticação das metas. O estudo da Comp revela que em empresas de Série B ou superior, a adoção de ICP com múltiplos salariais é duas vezes mais comum do que em empresas Seed ou Série A. Essa governança é ainda mais frequente entre empresas com estruturas de carreira formalizadas. Mas sem uma governança clara sobre faixas, exceções e critérios de valorização, o risco de erosão da equidade interna é alto. Profissionais percebem as distorções com mais rapidez do que os executivos imaginam – e isso impacta claramente o engajamento, a cultura e a retenção.
Nem tudo que se mede importa, e o que importa nem sempre é medido. A sofisticação das análises salariais nos últimos anos trouxe uma nova perspectiva: não basta olhar o valor absoluto dos salários, é preciso analisar sua coerência com a estrutura da empresa, seus objetivos estratégicos e seu estágio de maturidade. Avaliações como o índice Comp têm ajudado a revelar desequilíbrios antes invisíveis e a orientar ajustes finos na lógica interna de remuneração.
Cada vez mais, critérios como escassez de competências, complexidade técnica e impacto direto no negócio têm ganhado peso frente a fatores como localização geográfica ou custo de vida. Isso tem gerado o que chamamos de micromercados internos, onde profissionais com cargos semelhantes podem receber salários diferentes, desde que haja critérios objetivos para isso. O papel do RH não é nivelar por baixo, mas explicar com transparência o porquê dessas diferenças. Equidade não é uniformidade. É coerência.
Pagar bem ou pagar mais?
Recentemente, conduzi um processo para uma posição de AI Architect em uma multinacional com presença global. A busca era por um profissional com senioridade alta, domínio técnico em IA generativa e fluência em inglês para liderar frentes estratégicas de automação. Em poucos dias, após mapear o mercado e cruzar dados a partir de um trabalho de sourcing qualificado, a realidade se impôs com clareza: o número de profissionais com esse perfil era extremamente limitado, e a faixa salarial interna da empresa apresentava uma distorção significativa. A diferença entre o valor médio de mercado para esse talento e a faixa proposta originalmente ultrapassava 27%. Essa distorção não era resultado de uma supervalorização isolada, mas sim de uma combinação rara de competências técnicas, senioridade e fluência global algo que o modelo tradicional de cargos e salários ainda não está preparado para absorver.
Em muitos casos, aceitar pagar acima da média é a única forma de acessar um perfil crítico para a estratégia da empresa. O importante é que essa decisão esteja conectada a uma expectativa clara de retorno sobre o investimento seja em inovação, produtividade ou aceleração digital. Aqui também destaco a importância do uso de dados em atração para que decisões sejam fundamentadas.
Remuneração é, antes de tudo, uma decisão estratégica. E, como toda escolha estratégica, envolve renúncias, apostas e consequências. O maior desafio hoje das organizações não é simplesmente pagar mais. É pagar bem, com critérios claros, com visão de futuro e com uma narrativa de valor que conecte pessoas, áreas e propósito.
Em um mundo onde a tecnologia dita o ritmo, o papel do RH é garantir que a cultura não perca o compasso. E, cada vez mais, essa responsabilidade não está restrita aos times de Recursos Humanos, mas chega às mesas dos conselhos. Empresas que integram people analytics à tomada de decisão e tratam a remuneração como alavanca de coerência tendem a sair na frente. Porque no fim, o que se escolhe pagar bem revela exatamente onde a empresa pretende chegar.