Série “Ruptura”: o desafio de separar a identidade pessoal da profissional
Na ficção científica, funcionários têm chip no cérebro para esquecer, no trabalho, tudo o que é sua vida fora do escritório.

Muitas pessoas têm me perguntado sobre a série Ruptura (disponível no streaming da Apple), que traz questionamentos profundos sobre a relação entre vida pessoal e profissional. Como meu trabalho de headhunter me mantém em constante contato com os temas carreira, gestão e mercado de trabalho, decidi acompanhar a trama e mergulhar nas reflexões propostas.
A ideia por trás da história veio do próprio criador, Dan Erickson, que enfrentou frustrações reais nesse aspecto da vida. A premissa é intrigante: um chip implantado no cérebro permite que, ao entrar no elevador da empresa Lumon, a pessoa se “separe” em dois “eus” distintos.
O “Outie” é a versão externa, que vive sua vida fora do trabalho, sem saber absolutamente nada sobre sua rotina profissional. O “Innie”, por outro lado, é a versão que existe apenas dentro da empresa, sem qualquer memória da vida pessoal. Quando um funcionário entra no prédio para trabalhar, sua identidade externa desaparece e, quando sai, o inverso acontece.
Essa separação radical gera diversas questões. Durante o expediente, a única realidade do Innie é o trabalho. A sensação é de um dia sem fim: ele entra no elevador para “ir embora”, mas imediatamente está de volta, sem ver o tempo passar. Sem janelas ou referências temporais, esses funcionários perdem a noção do mundo exterior, e, caso faltem ao trabalho, sequer percebem. Essa distorção do tempo e do espaço cria uma realidade opressora, com os “Innies” sentindo que vivem em um círculo fechado, sem passado ou futuro.
A série também explora a fragmentação da identidade. As pessoas desenvolvem personalidades diferentes dentro e fora do trabalho: mudam a forma de falar, a postura corporal e até mesmo suas crenças. No ambiente corporativo, são condicionadas a obedecer sem questionar, convencidas de que seu trabalho é essencial, embora não saibam exatamente o porquê. Dentro da Lumon, os personagens trabalham no setor de “Refinamento de Macrodados”, mas sequer entendem o objetivo da tarefa ou a razão da existência da empresa. Eles aceitam instruções sem compreender o impacto do que fazem, um reflexo claro da alienação vivida em muitos ambientes corporativos reais.
Um dos aspectos mais humanos e emocionais da série está na história de Mark, o protagonista. Diferentemente de muitos, ele optou pela ruptura não apenas para trabalhar, mas para fugir de sua própria realidade pessoal. Após perder a esposa, ele encontra no trabalho a possibilidade de desligar sua dor, criando uma versão de si mesmo que nunca está em estado de luto, tristeza ou solidão.
Esse detalhe acrescenta uma camada ainda mais complexa à trama, pois nos leva a refletir sobre o quanto o trabalho, muitas vezes, se torna uma fuga para não enfrentarmos nossas questões pessoais. Quantas vezes nos jogamos em metas, projetos e reuniões intermináveis para evitar lidar com emoções difíceis que estão nos rondando? É como se a série nos questionasse: “Até que ponto é saudável essa desconexão voluntária de um dos nossos “eus”?
A crítica de Ruptura à cultura empresarial se manifesta de forma sutil, mas poderosa. A Lumon mantém seus trabalhadores motivados com pequenas recompensas superficiais e, às vezes, até infantis: uma “festa do waffle”, uma dancinha comemorativa, um convite corporativo para um jantar. Essas técnicas se assemelham a práticas reais de empresas que tentam manter a moral dos funcionários com brindes e eventos, mas negligenciam condições dignas de trabalho, o bem-estar do colaborador e um verdadeiro senso de propósito.
Série questiona o significado do trabalho
Outro aspecto marcante da série é como ela nos leva a refletir sobre nossa própria relação com a jornada do trabalho. Quantas vezes trabalhamos com foco total no fim de semana? Em quantos momentos nos pegamos funcionando no piloto automático, cumprindo metas sem entender seu real significado? No fundo, Ruptura questiona a cultura da hiperprodutividade e da dissociação emocional no trabalho, com muitos profissionais abrindo mão do bem-estar e da identidade pessoal para corresponder às expectativas corporativas.
A série também toca em um ponto crucial sobre saúde mental no escritório. O isolamento, a exaustão emocional e a perda de autonomia são questões reais que afetam muitos trabalhadores. Em Ruptura, isso se manifesta de forma extrema. E os sentimentos de angústia e alienação dos personagens podem ser facilmente reconhecidos no dia a dia de quem já se sentiu preso a um trabalho sem sentido ou sem perspectiva de crescimento.
As fontes de inspiração
Além de toda essa crítica ao mundo corporativo, Ruptura também se inspira em diversas referências literárias e cinematográficas. O próprio Dan Erickson citou ter sido influenciado pelo livro 1984, de George Orwell, e pela peça Entre Quatro Paredes, de Jean-Paul Sartre, que trabalha a ideia de que “o inferno são os outros”.
A estética e a atmosfera da série também lembram filmes como O Show de Truman, Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças e Brazil – O filme. Todos explorando realidades distópicas ou manipuladas. Até mesmo jogos como The Stanley Parable, que satirizam a alienação no trabalho, serviram de inspiração para a narrativa.
Dan Erickson também cita a inspiração no conceito The Backrooms, que evoca a sensação de espaços de escritório infinitos e estranhos. Quem quiser aprofundar as reflexões trazidas pela série pode encontrar nesses livros e filmes um excelente complemento para entender as questões filosóficas e psicológicas que moldaram Ruptura.
Relação com tendências atuais
Outro aspecto interessante a ser observado é o quanto a série dialoga com tendências contemporâneas, como o movimento da “grande renúncia”, que levou milhares de pessoas a abandonar seus empregos em busca de mais sentido e qualidade de vida. Isso aconteceu porque muitos profissionais perceberam que estavam presos em ciclos de trabalho sem propósito, priorizando empresas que, no fundo, não se importavam genuinamente com o bem-estar da equipe. Em Ruptura, essa alienação é elevada ao extremo, mas a reflexão é válida para qualquer um que já questionou se o tempo dedicado ao trabalho vale o preço pago em saúde física, mental e emocional.
Também é possível traçar um paralelo da série com o fenômeno do “quiet quitting” (demissão silenciosa), em que funcionários permanecem em seus empregos, mas deixam de se esforçar além do necessário, cumprindo apenas o mínimo exigido. O “Innie”, de Ruptura, não tem essa opção. Ele está aprisionado no trabalho, sem qualquer noção de que existe vida fora dali, mas o sentimento de desmotivação e desconexão com o propósito profissional é algo com o qual muitas pessoas se identificam no mundo real.
Depois de assistir às duas temporadas iniciais, refleti sobre algumas questões pontuais e gostaria de compartilhar com você. Faz sentido abrir mão de parte de quem somos para evitar a dor ou o tédio? É melhor estar desconectado da realidade e aparentemente satisfeito ou consciente e insatisfeito? Quantas empresas têm se apropriado da identidade dos funcionários, exigindo lealdade cega e desestimulando o pensamento crítico?
Será que essa separação radical entre trabalho e vida pessoal é realmente um ideal a ser alcançado? É possível buscar um ideal mais autêntico em que o trabalho seja parte da nossa história, mas não o centro absoluto de quem somos? É saudável ter uma adoração inquestionável aos fundadores de uma organização? O trabalho deve ser parte de quem somos ou tem potencial para definir nossa existência?
Acredito que as respostas para esses e outros questionamentos refletem a forma como escolhemos enxergar o trabalho. Para mim, a vida profissional deve ser uma esfera para espaço de crescimento e realização, apesar dos desafios, não um ambiente de tortura.
O verdadeiro equilíbrio não está em apagar memórias, mas sim em aumentar o nosso autoconhecimento, a nossa inteligência emocional e a nossa capacidade para tomar melhores decisões. Está em resgatar aquilo que realmente importa: nossa humanidade, nossa autonomia e nosso direito de viver plenamente dentro e fora do ambiente corporativo.