Transição de carreira: um guia para tirar o plano do papel
Saiba o que é essencial no planejamento para que a migração seja bem-sucedida. E conheça casos de profissionais que recalcularam a rota – e não se arrependem.

Rosângela Menezes era fascinada por física na adolescência. Natural do Amazonas, ela cursava o Ensino Médio técnico em eletrônica e, com a presença e a influência das empresas do polo industrial de Manaus, a tendência era seguir nas Exatas. Cursar uma faculdade de Engenharia parecia algo distante, “um vestibular difícil demais de passar”, então se decidiu pela Física. “Fui a primeira pessoa da família a entrar no Ensino Superior, então não tinha quem pudesse me ajudar a refletir”, lembra.
Formou-se, foi professora em escolas públicas e trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde lidava com física do solo e reflorestamento de áreas degradadas. “Fazer ciência me encantava, mas a academia é um ambiente hostil, especialmente para mulheres negras, e ainda mais nas Exatas”, diz. “Minha capacidade intelectual, técnica e até mesmo a relevância da minha área de pesquisa eram constantemente questionadas ou ridicularizadas.”
Hoje com 42 anos, Rosângela, cansada da misoginia e do racismo na ciência, deu uma guinada na vida. Ao constatar que levaria anos para ter uma carreira acadêmica sólida até concluir um doutorado e ser aprovada em um concurso para ser professora universitária, achou melhor buscar outros caminhos. Fazer uma nova faculdade poderia demorar menos tempo – e ampliar suas oportunidades, especialmente se fosse uma em que “mulheres têm mais chance de sucesso”. Ela atravessou o Brasil, foi estudar Jornalismo em Florianópolis (SC) e virou uma empreendedora no mercado digital.

Essa falta de oportunidade em sua própria área, sentida por Rosângela, é algo comum em uma a cada quatro pessoas que pensam em mudar de emprego, segundo uma pesquisa recente encomendada pelo LinkedIn, que ouviu mais de 30 mil pessoas. Ganhar mais (42%), equilíbrio entre trabalho e vida pessoal (31%) e confiança de que pode encontrar algo melhor (25%) são os outros fatores preponderantes. Um levantamento do site de informações de finanças GOBankingRates apontou que 57% dos americanos consideraram fazer uma mudança significativa na carreira em 2024.
Se trocar de empresa é algo hoje visto com normalidade, um percurso natural da carreira, mudar de área, muitas vezes tendo de voltar casinhas e começar de novo, assusta, causa ansiedade e levanta dúvidas e temores tanto no profissional que cogita essa transição quanto nas pessoas mais próximas – que seriam direta ou indiretamente impactadas pela mudança. Não é simples, mas, com boas doses de autoavaliação e preparo, dá para saltar de um trem para o outro sem correr tanto risco de se esborrachar.
O corpo fala quando é o momento
Se você está feliz e se sente realizado no que faz, é claro que não há por que procurar outra área. Nem sempre é o caso, porém. Luciana Rovegno foi trainee em multinacional, professora de inglês, gestora acadêmica, consultora em educação corporativa, executiva de RH… até ser coach executiva, sua atual função. “Esses movimentos na minha trajetória foram a estratégia encontrada para buscar um sentido e, honestamente, felicidade”, conta.
Em sua experiência com as pessoas que atendeu, Luciana diz que o momento certo de optar pela transição de carreira surge em sinais emocionais ou físicos. Tédio, frustração, melancolia, dor de cabeça, insônia, tensão muscular ou dor nas costas podem ser um indicativo. No entanto, caso haja sintomas mais sérios, que indiquem cansaço extremo ou até um burnout, é melhor deixar os questionamentos sobre a carreira para outro momento. “Se há uma questão de saúde mental, busque ajuda médica e psicológica primeiro, não tome nenhuma decisão relevante no ápice do mal-estar”, alerta.
Isis Borge, diretora-executiva da Talenses e colunista da Você RH, explica que, às vezes, os sinais também podem ser externos. Se a situação da empresa atual for instável, como um processo de recuperação judicial, previsão de venda para um outro grupo ou mudanças na alta liderança, talvez seja um bom momento para pensar em mudar de emprego ou até mesmo de carreira. “Nesses casos, a nova direção estratégica da empresa é incerta, e o histórico de cada profissional tende a ser desconsiderado”, diz.

O headhunter Filippe Apolo, cofundador da consultoria de capital humano Fox, afirma que o momento de decidir pela mudança de carreira ocorre quando a tríade perspectiva-viabilidade financeira-propósito não se sustenta mais. Mas ele alerta: “Não idealize a grama do vizinho antes de ter certeza de que pode fazer essa transição dentro da própria empresa. Se tiver abertura, fale com seu gestor sobre o desejo de mudar de área. É mais simples e seguro do que se lançar ao mercado”.
Embora não tenha permanecido na organização, foi com uma oportunidade dentro dela que Felipe Herszenhaut, 36 anos, acabou mudando totalmente o rumo de sua carreira. Engenheiro de produção, ele passou cinco anos no Grupo Fleury, desempenhando funções ligadas a planejamento financeiro e inteligência de negócios. Lá, conheceu um programa de desenvolvimento integral oferecido pelo RH que abordava temas como emoções e propósito. “Fomos incentivados a identificar valores pessoais, paixões e talentos. Isso me ajudou a perceber que a educação básica é um campo onde eu poderia gerar impacto.”
O episódio deixou mais claro um desconforto que ele percebia. Mesmo bem-sucedido na área, Felipe sentia que não exercia todo o seu potencial e que queria desenvolver outras competências. Havia ali um vazio. “Meu trabalho carecia de um propósito mais conectado com impacto social.”
Ele acabou saindo do Fleury e deixando São Paulo em 2018. Mudou-se para Serra (ES), onde começou a trabalhar com educação básica, dando aulas de Física em escolas públicas de áreas vulneráveis. Hoje, é gerente de projetos de políticas públicas educacionais na Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro.
Como mudar de carreira (sem apanhar muito)
Preparar-se profissionalmente, estudar, cultivar uma nova rede de contatos e cuidar da saúde financeira são os maiores desafios nessa transição. O primeiro passo é identificar habilidades e competências que você tem e as que faltam para trabalhar na nova carreira.
“Um curso, muitas vezes, pode suprir a falta de conhecimento, mas isso não equivale a dizer que uma formação será capaz de desenvolver as competências necessárias, porque a habilidade vem da prática”, diz Luciana Rovegno. “Por outro lado, um curso pode apoiar o profissional a criar contatos relevantes, especialmente quando o desejo é migrar para uma área em que se tem pouco ou nenhum trânsito.”

Preparar as finanças pessoais também é essencial. Mesmo que o objetivo seja migrar para uma área mais aquecida e com salários maiores, é provável que a pessoa comece com um cargo mais júnior, recebendo menos do que ganhava na vaga anterior. A coach Luciana recomenda que se tenha uma reserva de emergência que cubra pelo menos seis a 12 meses do seu custo médio mensal. Ou seja, se você tem um gasto médio de R$ 5 mil, é melhor cogitar mudar de carreira se tiver, no mínimo, R$ 30 mil para garantir seu sustento.
Rosângela Menezes não teve como estruturar esse pé-de-meia: “Minha transição de carreira aconteceu sem planejamento financeiro, longe da família e aos 30 anos. Parece a fórmula perfeita para o fracasso”. Mas ela acreditava que a vida nova na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) traria mais oportunidades. “Cursar uma das melhores graduações em Jornalismo do país, em um curso bem prático, me abriu muitas possibilidades”, diz. “Para mim, foi uma conta simples. Não ganhava bem, minha inteligência era constantemente questionada e minha criatividade, podada. Por que não tentar algo novo, onde eu pudesse ganhar mais e me sentir mais livre para criar?”
Com o novo diploma, Rosângela atuou no marketing, e a partir daí conseguiu estruturar melhor a nova carreira. Fez uma pós-graduação em big data e começou a trabalhar em marketing digital. Paralelamente, quis empreender de novo por questões práticas. “Comecei a vender bolos quando decidi que queria ser mãe, motivada pelo medo de perder o emprego ao retornar da licença-maternidade”, diz.
Ela então resgatou uma tradição familiar, a produção de bolos, e a confeitaria se mostrou um negócio mais bem-sucedido do que tinha imaginado, com um público fiel na capital catarinense. Até que chegou um momento em que a nova empresária precisou escolher qual dos dois caminhos seguir. Rosângela seguiu no marketing, mas o aprendizado no primeiro empreendimento foi muito útil para o segundo: durante a pandemia, acompanhando de longe a crise de oxigênio em Manaus, ela fundou a Awalé, uma edtech voltada para capacitar pessoas negras e indígenas no mercado digital.
Felipe Herszenhaut cita ainda outros pontos relevantes para quem considera a possibilidade de mudar: buscar mentoria, conversar com quem trilhou rumos semelhantes, construir redes e se conectar ao seu propósito. “Seja adaptável, tenha paciência. Transições levam tempo. E não acho que ‘resiliência’ seja o melhor termo – conheci a palavra como a propriedade de um material absorver energia sem perder sua forma original –, mas sim ‘adaptabilidade’”, diz. O uso das palavras mostra que a sintonia do professor com o engenheiro segue firme nesse novo momento.
A bagagem faz diferença
A transição pode envolver insegurança financeira, cargos menos qualificados e uma rede de contatos reduzida. No entanto, um profissional com uma nova carreira carrega consigo fortalezas que podem beneficiar a si mesmo e quem estiver por perto. “Como física, desenvolvi um raciocínio lógico-analítico. Como jornalista, aprendi a contar histórias e a traduzir informações complexas em mensagens claras. Já a experiência como doceira trouxe a capacidade de empreender com recursos limitados”, resume Rosângela.
No caso de Felipe, a experiência com gestão de projetos, análise de dados, facilitação, resolução de problemas e comunicação se mostrou útil em sua migração para a sala de aula.
Ajuda ainda mais quando esses migrantes comunicam a transição como uma evolução de carreira, explica Isis Borge, que acredita ser importante que eles destaquem como as habilidades e aprendizados adquiridos no trabalho anterior podem ser úteis no novo.
Para Isis, as habilidades comportamentais são mais facilmente transferíveis. “Além disso, a visão sistêmica que a pessoa traz também costuma ser valorizada”, lembra. Porém isso depende também da distância entre as áreas, segundo Luciana Rovegno. “Alguns profissionais conseguem ampliar sua credibilidade ao agregar perspectivas. Já outros de fato promovem rupturas, e suas carreiras anteriores vão perdendo relevância com o passar do tempo.”
Mais do que uma questão de melhor ou pior, certo ou errado, trata-se de um lembrete de que, dependendo da transição, a bagagem anterior pode ser mais proveitosa do que em outras. Mas o que se leva nunca é inútil. Afinal, nenhuma carreira é igual do início ao fim. Como defende Rosângela Menezes, “mudar de profissão significa crescimento, não recomeçar do zero”.
O QUE CONSIDERAR
A coach executiva Luciana Rovegno enumera os pontos mais importantes a levar em conta.
- Mudar para uma área completamente diferente pode cobrar um pedágio grande e exigir formações específicas. A pessoa talvez precise retornar à faculdade, num processo de voltar várias casinhas no tabuleiro da carreira.
- Antes de tomar tal decisão, procure entender se a nova área realmente faz seus olhos brilharem. Essa motivação será essencial para resistir ao tempo e às dificuldades de “começar por baixo”.
- Ainda que a transição não seja tão radical, pesquise sobre a nova carreira, veja como é o dia a dia, descubra a rotina das pessoas por meio das redes sociais.
- Avalie as perspectivas da profissão como um todo. É um campo em ascensão ou ela corre o risco de desaparecer em alguns anos com o avanço de tecnologias como a inteligência artificial?
- Converse com profissionais da área, visite seus locais de trabalho. Vale até se oferecer para um estágio não remunerado.
AS ÁREAS QUENTES
A transformação tecnológica está fazendo com que muita gente, de áreas distintas, tente mudar de profissão, segundo Isis Borge, da Talenses. Confira alguns dos setores mais desejados.
- Tecnologia e dados. Profissões relacionadas a análise de dados, inteligência artificial, cibersegurança e desenvolvimento de software.
- ESG. Há novas oportunidades em áreas como gestão ambiental, energia renovável e consultoria em sustentabilidade.
- Saúde e bem-estar. A pandemia intensificou o interesse e propiciou o desenvolvimento de novas carreiras em telemedicina, biotecnologia, fitness e saúde mental.
- Educação e treinamento digital. Profissões relacionadas à criação de conteúdo educacional, e-learning e design instrucional têm crescido.
- Marketing digital e economia criativa. A explosão do comércio eletrônico aumentou a demanda por profissionais em marketing digital, produção de conteúdo e gestão de redes sociais.
- Logística. A evolução do e-commerce e a necessidade de cadeias de fornecimento mais ágeis ampliou a procura por profissionais de logística, gestão de operações e planejamento estratégico.
Este texto é parte da edição 96 (fevereiro e março) da Você RH. Clique aqui e confira outros conteúdos da revista impressa.