ssistimos na última década uma grande disseminação sobre a formulação e adoção de propósitos nas organizações de todas os setores em nossa sociedade. Vejo com muito bons olhos esta difusão, porque entendo o propósito como algo que traduz a essência de uma organização — o seu “porquê”, como definiu com simplicidade e de forma direta Simon Sinek em um TED Talk.
Mas como tantas outras técnicas ou elementos de gestão utilizados, dissemina-se mais rapidamente quando organizações ou pessoas notórias passam a falar sobre o tema, o que nos coloca sempre sob o risco de o uso ser superficial ou com um significado diferente de sua criação.
Será que essa disseminação está impulsionada pela necessidade de atribuirmos um valor reconhecido pelas pessoas nas atividades de uma organização, notadamente às privadas? Será que fomos seduzidos por mais uma fórmula simples, que deixará de ser usada em uma ou duas décadas, como vimos o declínio da discussão de valores ou da responsabilidade social empresarial? Apenas renomeamos e velha e boa missão? É sobre isto que eu gostaria de refletir.
Mas afinal o que é propósito?
A palavra propósito tem sua origem no latim: propositum e significa vontade ou intenção de realizar algo, aquilo que se busca alcançar. A maior parte dos significados diz respeito a uma busca, algo cujo esforço humano vale a pena.
Logo, a palavra deveria ser utilizada para traduzir algo verdadeiramente essencial, ou no mínimo importante, e que mobilizaria e desafiaria pessoas à sua realização.
Seu uso não é novo e a origem já se perde no tempo. É encontrada em escritos bíblicos e demais obras da mesma época e já podia ser encontrado bem disseminado no Terceiro Setor na década de 1980. Em muitas destas organizações, víamos propósitos e missões que traduziam seu posicionamento na sociedade no longo prazo e que auxiliavam a gerar mobilização voluntária rapidamente.
Estou convicto que este uso, alavancou a adoção no Primeiro e Segundo Setores (públicos e privados) e ajudou a fortalecer o vínculo que organizações privadas vinham buscando com dois públicos-alvos importantíssimos: seus clientes e seus funcionários.
O propósito identifica, quando bem elaborado, o valor que uma organização pretende gerar e entregar para a sociedade e, muitas vezes, que o fará cuidando dos efeitos de sua existência.
Um propósito elaborado sob esta perspectiva mobiliza funcionários a fazerem o seu melhor, a verem sentido em estar engajados de forma relevante, levando valores positivos e efetivos aos seus clientes ou toda a sociedade. São exemplos muito interessantes as versões “Bring the plant potencial for life” (uma grande empresa da agroindústria), “pationtenly improving pacient lives” (uma grande empresa farmacêutica) ou “Fazer as pessoas felizes” (Disney). Bons propósitos costuma ser sintéticos e dispensam grandes textos em sua redação.
Em síntese, considero um bom propósito:
- Um texto sintético e mobilizador
- Que fale ao público alvo da organização ou mesmo a toda sociedade
- Defina com clareza o valor que pretende gerar ou entregar
- Que consiga ser mobilizador, apaixonante se possível, para os seus funcionários.
- Atemporal
Será que Missão e Propósito são a mesma coisa? Vamos tentar entender para diferenciar: existem muitas definições de missão na literatura de administração de empresas ou organizações. Gosto da definição de que missão descreve a razão de existência, onde atua e como a empresa se posiciona na sociedade.
O seu significado é o mesmo de propósito? Eu diria que são muito semelhantes, mas não são iguais. A missão é uma definição um pouco mais formal e tem uma diferença significativa: tem menor preocupação de falar ao público alvo o valor a ser gerado. É forte e atemporal, mas não necessariamente mobilizadora. Fala da identidade da organização, mas não necessariamente constrói um compromisso.
Adoção e disseminação
Por que sua adoção foi acelerada pelas empresas privadas nos últimos 10 anos? Na última década vimos crescer muito a preocupação de mudar as formas de engajamento das empresas com seus funcionários. Percebemos que as gerações que sucederam a geração X apresentavam comportamentos que demonstravam uma preocupação que ultrapassasse o bordão “gerar valor para o acionista”, e pudesse representar algo mais significativo para eles e para a sociedade. Os jovens passaram a buscar por algo que valesse a pena estar engajado.
Grandes corporações ligadas nestas tendências buscaram inspiração em empresas que já usavam o propósito. Simultaneamente, perceberam que a competitividade exigia a adoção e disseminação do client centricity. A ampliação da competitividade trouxe necessidade de acelerar a percepção de valor pelo cliente e que este valor estivesse ligado a sua identidade e não só atributos estéticos ou de status (p.e.).
Foi desta forma, num contexto complexo e de alta competição, que algumas palavras que já apareciam nas discussões de cenários de longo prazo foram sendo adotadas e passaram a traduzir necessidades e posicionamentos: sustentabilidade, inclusão, saudabilidade, equilíbrio, identidade…
Assim, o uso do propósito encontra campo fértil pelo potencial de traduzir algo essencial, de mobilizar corações e mentes para desafios de longo prazo e para convergir preocupações individuais com preocupações de corporações. É no abrigo deste contexto que vimos evoluírem muito a diversidade, a inclusão e a própria inovação. Tudo isto acelerou o uso do propósito, substituindo ou sendo somado aos outros elementos essenciais das organizações.
Na minha forma de ver, não chegamos ainda ao ápice do uso do propósito. Ainda há muito espaço para um aperfeiçoamento de enunciados e, principalmente, para que eles traduzam efetivamente a essência, o porquê de cada organização.
A adoção progressiva de práticas de ESG e a contínua preocupação com o meio ambiente e saúde e bem-estar continuarão a ser características de um contexto propício para o uso de propósitos e para seu aperfeiçoamento.
O bom uso (e o mau uso)
A notoriedade de algumas organizações admiradas em nossas sociedades (seja pela sua longevidade e/ou pela sua capacidade de competir ou ainda de formular novos padrões de referência) impulsiona a adoção e/ou mudança de práticas de gestão. Neste caso em específico, isso não é diferente.
Como essas organizações rapidamente se tornam referência, sua forma de ser e de mobilizar é copiada e almejada. Elas têm a capacidade de formar admiradores de todos os tipos e suas práticas, de forma mais profunda ou simplista, são interpretadas, copiadas ou inspiram a mudança de outras organizações e indivíduos.
Esta notoriedade é um poderoso atalho para muita coisa positiva, mas pode ser um risco quando interpretamos de forma simplista (propositalmente ou não) ou quando tentarmos gerar e capturar o valor expresso e de mobilização de palavras, expressões ou conjuntos (formulações, enunciados) como de um Propósito. Quando se busca o efeito, sem real compromisso de longo prazo.
É muito sedutor para empreendedores ou CEO, adotar práticas e propósitos pelo seu possível efeito — não necessariamente pelo seu valor intrínseco. Quando isso ocorre, um propósito não é um “porquê” abusando da definição do Simon Sinek (“why”), mas uma “para quem”, na melhor das hipóteses.
Já vimos esse fenômeno em várias situações ao longo da história, com as mais diversas justificativas e interesses. Isso requer cuidado e vigilância por parte da sociedade civil, mesmo de órgãos reguladores ou simplesmente dos clientes.
Como nosso foco específico e de interesse aqui são as empresas privadas, eu diria que empreendedores, conselheiros e executivos devem tomar um cuidado especial ao formularem um propósito sob sua responsabilidade: seduzir-se pelo quanto podem mobilizar sem a preocupação de realiza-los efetivamente poderá gerar efeitos inversos entre os seus funcionários e na própria sociedade. Já assisti a profissionais de todos os níveis desdenharem de um propósito muito bonito e bem formulado, mas que contrariava flagrantemente a postura da empresa na sociedade de uma forma geral, a sua cultura praticada nos seus corredores. Efeito? Descrédito, desconfiança, imobilismo na melhor das hipóteses, perda de talentos.
Mas, e se a empresa não está à altura do propósito que gostaria de vivenciar? Bom, se a preocupação da empresa, legitimamente, é estabelecer uma relação de longo prazo com a sociedade de forma sustentável e duradoura, sugiro adotar e enunciar o propósito de forma modesta, mas realista.
Assim, o propósito é fundamental e acredito que é um elemento bastante importante para quaisquer organizações. É mobilizador e pode nos ajudar a estabelecer relações de confiança gerando iniciativa e engajamento. Mas deve ser usado com cautela. Não ceder ao sedutor impulso de buscar colher resultado de sua disseminação e veiculação, que seriam forte mobilização de empregados e público alvo, sem o compromisso responsável e construtivo de vivenciá-lo.
É possível impedir o uso do propósito para algo tão superficial e de curto prazo? Seguramente não. Mas contamos com a responsabilidade daqueles que detém o poder das organizações e de uma sociedade vigiante que para pensar no longo prazo e diferenciar aqueles que dizem e os que fazem. E esta diferenciação deverá gerar valor superior e no longo prazo para algumas organizações que receberão a adesão e a admiração de quem está pensando o futuro, e não esgotando no presente, nosso passado.
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