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Sem quadro branco nem sala de aula: o poder do aprendizado incidental

O conhecimento mais valioso para o trabalho pode surgir em um curso aleatório, no jogo de vôlei da filha ou observando o comportamento dos bebês.

Por Redação
23 jun 2025, 12h14
Imagem, em fundo verde claro, do livro Aprendizado Incidental – o poder do lifewide learning.
 (Editora Gente/Reprodução)
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Você lembra de quando aprendeu a andar de bicicleta? Provavelmente não. É assim que funciona o aprendizado incidental: ele acontece no meio da rotina, sem precisar de uma aula formal, de uma certificação brilhante ou de um curso caríssimo. Aprender sem perceber virou quase um superpoder. E, no ambiente de trabalho, pode ser a grande virada para empresas e profissionais que querem sair do piloto automático da capacitação tradicional.

No dia a dia corporativo, a gente costuma associar aprendizado a algo que vem com inscrição, login, certificado e, muitas vezes, sono. O modelo clássico ainda paira sobre muitos programas: conteúdos padronizados, metas de aprendizagem e avaliações no final. Mas a vida real raramente é assim. Muito do que a gente aprende no trabalho acontece na observação, no improviso e, principalmente, sem aviso prévio.

Autores como Arthur Reber, um dos primeiros a estudar o aprendizado implícito, começaram a investigar como o cérebro processa padrões, regras e comportamentos sem que a gente precise de instruções diretas. Já o psicólogo e antropólogo Merlin Donald trouxe para o jogo uma perspectiva evolutiva: aprendemos de forma implícita porque esse é um mecanismo que nos ajudou a sobreviver como espécie.

Agora, o especialista Conrado Schlochauer (colunista da Você RH), que estuda como adultos aprendem no ambiente corporativo, lança o livro Aprendizado Incidental propondo algo mais ousado: e se a gente começasse a olhar para essas experiências informais como o centro do aprendizado, e não como um bônus aleatório?

Porque viver – e trabalhar – já é, por si só, um processo constante de aprendizagem. A grande sacada está em reconhecer e valorizar isso, tanto individualmente quanto na cultura das organizações.

TRECHO DO LIVRO

Capítulo 2: O que é aprendizado incidental?

Em tradução livre, a expressão [lifewide learning] significa “aprendizado em todos os domínios da vida”. O conceito, proposto pela Unesco, amplia os caminhos para o aprendizado e “coloca uma tônica mais acentuada na complementaridade das aprendizagens formal, não formal e informal, lembrando que uma aquisição de conhecimentos útil e agradável pode decorrer, e decorre de fato, no seio da família, durante o tempo de lazer, na convivência comunitária e na vida profissional cotidiana”.

Em resumo, a fala acima diz respeito ao aprendizado que ocorre no dia a dia de cada um de nós, em especial no tempo que se passa fora da escola. A Unesco tem considerado o lifewide learning um caminho para o que chama de justiça epistêmica, ou seja, para a promoção de equidade no acesso, na produção e na valorização do conhecimento. Se o aprendizado não se dá só no ambiente escolar formal, aumenta o número de pessoas que podem aprender e ensinar.

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O lifewide learning pode ocorrer de duas formas.

A primeira é intencional. Por exemplo, quando me matriculei em um curso de palhaço, há alguns anos, fiz uma escolha de aprendizado deliberada e focada: queria aumentar minha criatividade. Entretanto, ao longo do tempo, percebi que estava aprendendo mais sobre outros aspectos da minha personalidade do que sobre meu processo de geração de ideias. Eu fazia terapia à época, e uma vez o analista falou: “Conrado, o curso de palhaço está dando de dez a zero nas nossas sessões. Você tem se descoberto tanto por lá!”.

Essa é a segunda forma pela qual o lifewide learning ocorre, sem nossa escolha consciente. O aprendizado incidental é um subproduto natural de atividades que uma pessoa realiza por outros motivos. Ele acontece enquanto tocamos nossa vida. Dentre as possibilidades de lifewide learning, valorizo muito esse caminho porque ele pode ocorrer o tempo todo, a partir das escolhas que fazemos e da forma como interagimos com o mundo.

A American Psychological Association trabalha com uma acepção um pouco mais extensa. Segundo o grupo, o aprendizado incidental é aquele que “não é premeditado, deliberado ou intencional e que é adquirido como resultado de alguma outra atividade mental, possivelmente não relacionada”.

Em princípio, não haveria o que acrescentar. É algo natural do ser humano.

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Na convivência com os filhos, esse tipo de desenvolvimento ocorre o tempo todo. Quando minha filha mais velha entrou como atleta federada no time de vôlei do clube do qual somos sócios, ela era reserva. Durante uma competição, percebi que, nos pedidos de tempo, ela corria para distribuir garrafinhas de água para as atletas que estavam em quadra naquele momento. Voltando para casa, puxei um papo sobre essa atitude. Questionei se não seria melhor ela ficar atenta à fala da técnica, para ouvir os comandos e demonstrar vontade de jogar. A resposta dela foi: “Pai, neste momento, para o time, é muito mais importante quem está na quadra escutar os comandos e poder se hidratar. Ela me vê treinar, sabe quando tenho que entrar”.

Além do orgulho que senti ao constatar a maturidade da pequena atleta de 13 anos, esse papo me fez parar e pensar no que estava por trás das minhas palavras. Elas refletiam uma vontade egoica de ver minha filha jogar como titular, sem também pensar no time ou no resultado do jogo. A verdade é que a resposta dela me permitiu parar para entender (e mudar) algumas atitudes.

É disso que estamos falando. Uma conversa de pai e filha se transformou num espaço de reflexão. Em princípio, a relação parece bastante simples: acontece alguma coisa e você aprende. Entretanto, o que realmente acontece na nossa mente quando experimentamos momentos de aprendizado incidental? Do ponto de vista evolutivo, por que ele existe? Existem características de personalidade que o potencializam ou inibem?

Para responder a essas questões, deparei-me como um desafio. O mundo da aprendizagem é objeto de estudo de pesquisadores de diversos campos de conhecimento: educação, psicologia, sociologia, recursos humanos, neurociência, ciências do comportamento e filosofia, entre outros. Dentro de cada um desses campos, há subdivisões. Para estudar esse fenômeno sob a ótica da psicologia, podemos falar, por exemplo, de psicologia da aprendizagem, psicologia do desenvolvimento, psicologia experimental e psicologia cognitiva.

É muito comum que esses campos do conhecimento não conversem entre si. A dificuldade vai além: os termos e as expressões utilizados são diferentes. No meu doutorado, vivi essa cisão quando descobri que o Handbook of Educational Psychology, um manual clássico de psicologia educacional, não compartilha nenhum autor com o Handbook of Adult and Continuing Education, outra grande referência, mas da área de educação de adultos.

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Conheci a expressão “aprendizado incidental” a partir das publicações e pesquisas de Victoria Marsick e Karen Watkins, ambas da área de educação de adultos e da aprendizagem corporativa. O campo de estudo e o olhar das duas professoras estão muito relacionados ao ambiente corporativo.

Investigo esse tema pela lente da psicologia cognitiva. Os autores e as referências a que recorro vêm dessa área. Daí minha surpresa quando comecei a estudar o assunto, há alguns anos, e não achei nenhuma menção a aprendizado incidental entre os autores e textos clássicos. Com um pouco de pesquisa, compreendi que, no mundo da psicologia, o olhar é diverso: o fenômeno sobre o qual estou me debruçando é estudado e relatado a partir de um campo muito maior (e mais complexo) denominado aprendizado implícito.

[…]

A evolução da mente humana

A aprendizagem implícita faz parte do processo evolutivo que permitiu que nossos ancestrais compreendessem as variações do ambiente.

Bebês aprendem a andar, falar e agir de acordo com regras sociais por meio da aprendizagem implícita. Essa forma de nos desenvolvermos traz vantagens por ser mais robusta (preservada mesmo quando ocorrem lesões ou disfunções cognitivas permanentes), duradoura (menos propensa à interferência de outras tarefas) e econômica (do ponto de vista cognitivo).

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[…]

É comum crianças, no início do letramento em Matemática, acertarem o resultado de uma conta sem saber exatamente como chegaram a ele. Muitas vezes, duvidamos da capacidade das crianças, a menos que elas nos descrevam o caminho do aprendizado. Quando meu filho fala “Pai, vai na minha, a resposta é 34”, minha reação é ignorar o aprendizado implícito. Minha resposta é algo como “Deixe de preguiça e escreva todas as etapas”.

Refletir sobre o caminho que nos levou à solução do problema e compreender os algoritmos utilizados nos traz vantagens cognitivas. Esse processo metacognitivo aumenta a probabilidade de o aprendizado ser consolidado na memória de longo prazo, tornando mais fácil acessar esse conhecimento diante de situações semelhantes no futuro.

Mesmo quando não percebemos, estamos aprendendo e nos beneficiando disso. Acreditar nisso é fundamental para aproveitar as oportunidades do aprendizado incidental. Você já reparou que muitas vezes repassamos a posição das teclas, digitando no ar, para lembrar uma senha ou telefone? Como o nosso cérebro memoriza fisicamente a posição dos números? Alguém treina isso conscientemente? Não conseguimos explicar por que sabemos, mas sabemos que sabemos.

Esse tipo de aprendizado é parte constituinte da nossa formação: dependemos dele desde os primeiros anos de vida. Diferentemente do que acontece com outras espécies, nós nascemos com uma estrutura neurológica incompleta. Nos primeiros anos de vida, somos absolutamente dependentes de adultos para nossa sobrevivência. Só iniciamos o processo de emancipação por meio do aprendizado implícito.

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Este texto é parte da edição 98 (junho e julho) da Você RH. Clique aqui e confira outros conteúdos da revista impressa.

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