Equidade salarial: a legislação determina, mas na prática não acontece
Entenda por que a disparidade de remuneração entre homens e mulheres persiste – e quais as estratégias das empresas que se esforçam para eliminá-la.
pesar de, nos últimos 15 anos, o mundo ter dado sinais de maior preocupação com a desigualdade de salários entre homens e mulheres, nenhum país conseguiu resolvê-la por completo. É o que aponta o Global Gender Gap Report 2022, elaborado pelo Fórum Econômico Mundial. No ranking de 146 nações, as que estão mais próximas dessa sonhada paridade são a Islândia, a Finlândia e a Noruega. O Brasil… longe disso. Estamos classificados no 94º lugar e numa situação pior do que em 2020 – perdemos duas posições.
Assim como esse relatório, há outros estudos que confirmam quanto o mundo está distante de alcançar a equidade de remuneração entre homens e mulheres. Em um documento publicado em março, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) destaca que a situação delas no mercado é pior do que se pensava. Isso porque os critérios usados para definir desemprego tendem a excluir, por exemplo, aquelas que não estão disponíveis para aceitar um posto de última hora em razão das responsabilidades com a família. Usando um novo indicador, que engloba todas as pessoas sem emprego interessadas em conseguir um, a OIT mostra que as mulheres, além da maior dificuldade de acessá-lo (15% ante 10,5% dos homens), precisam encarar salários bem menores: para cada dólar que eles ganham, elas recebem 51 centavos.
No Brasil, claro, as diferenças são gritantes. Um levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), com base na Pnad Contínua, aponta que as mulheres recebem 21% menos que os homens, em média. E que a remuneração mais baixa acontece, inclusive, nos setores em que elas são maioria. Por exemplo: na área de “educação, saúde e serviços sociais” (que o Dieese aglutina em seu levantamento), elas ganham 32% menos.
É comum, aliás, que elas ocupem profissões que pagam menos nesses campos. Na saúde, as mulheres estão em quase 85% das posições de enfermagem, segundo o Cofen, o conselho federal da categoria. Já entre os médicos, elas continuam minoria (mas estão avançando): chegaram a 48,6% em 2022, ante 40% em 2010 – de acordo com um estudo da Faculdade de Medicina da USP em parceria com a Associação Médica Brasileira. Esse “empate técnico” nas vagas não funciona do mesmo jeito na remuneração: a pesquisa aponta que as doutoras ganham, em média, 36% menos que os doutores.
Machismo estrutural
Para Daniela Verzola Vaz, pesquisadora do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam), a tradição de a mulher se ver obrigada a conciliar a carreira com a administração do lar é um desafio para obter maiores salários. “A mulher introjeta a ideia de que, no futuro, vai ter mais cuidados com a família”, diz. “Então, muitas vezes, acaba moldando suas escolhas por atividades em que é possível conduzir as duas coisas.” Uma limitação de opções que os homens não costumam ter.
É também o que aponta outra pesquisadora, Janaína Feijó, do Instituto Brasileiro de Economia da FGV. A partir de uma análise sobre o período de 2012 a 2022, ela detectou que responsabilidades familiares dificultam a performance das mulheres em postos com jornadas inflexíveis. “A complexidade de ser executiva e cuidar da casa aumenta as chances de elas aceitarem salários mais baixos e funções diferentes de sua profissão. Tudo em troca de jornadas menos rígidas.”
Nessa análise, Feijó identificou um avanço entre 2012 e 2022: uma redução de dez pontos percentuais no gap salarial entre homens e mulheres. Ainda assim, ele se mantém acima dos 20% (número que corresponde ao levantamento do Dieese). A pesquisadora também constatou um pequeno crescimento da parcela de mulheres em cargos de chefia: de 37,8% em 2012 para 39,2% em 2022.
Leis que não pegaram
O cenário de desigualdade e discriminação de gênero por aqui não decorre da falta de legislação. A proibição da diferença salarial por motivo de sexo já aparece na Constituição de 1934 e é reafirmada na de 1988, que proíbe também a distinção por motivo de sexo no exercício de funções e no critério de admissão. Outro documento que determina os mesmos salários para as mesmas funções é a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943.
Na prática, porém, essas leis são daquelas que não pegaram. Há falta de fiscalização. As multas para o empregador, muitas vezes, são irrisórias. E nem sempre a mulher consegue provas caso entre com um processo (a distinção pode acontecer de maneira sutil e ter justificativas sem nada a ver com o sexo da pessoa). Essa dificuldade, inclusive, é uma das hipóteses para o baixo volume de ações trabalhistas por discriminação de gênero: do total de 2,7 milhões de novas ações de trabalho no Brasil em 2022, a equiparação salarial ou isonomia foi assunto de 36,9 mil, e a promoção relacionada à diferença de gênero, de 9,6 mil.
Mas há motivos para esperança. O Projeto de Lei 1.085/2023 foi aprovado pela Câmara no dia 4 de maio (seguiu para o Senado após o fechamento desta edição) e pode trazer mudanças positivas. Ele pune duramente o empregador que descumprir a lei de salários iguais para funções iguais, amplia os mecanismos de fiscalização e determina que empresas com mais de 20 funcionários publiquem relatórios de transparência salarial. Essa abertura do valor dos salários, aliás, também está no texto de outro projeto de lei, que tramita na Câmara dos Deputados. Mas a proposta, nesse caso, é exigir que a informação esteja no anúncio das vagas.
Rafael Ricarte, líder de produtos e inovação da Mercer, uma consultoria de RH, acredita que essas leis podem ser efetivas para reduzir as disparidades por gênero. Mas também acha que as mudanças não devem ocorrer da noite para o dia. Simplesmente porque, no mundo real, as empresas não estão preparadas para justificar as diferenças que vão aparecer – nem os funcionários, para entendê-las. Esses dois fatores, juntos, podem dar margem a desengajamento e demissões.
E mais: na perspectiva da empresa, a exigência de divulgar o salário no anúncio da vaga atrapalha na hora de contratar pessoas mais qualificadas. “A maneira como a transparência salarial vem sendo implementada na Europa me parece a mais adequada: veio primeiro como uma diretiva e deu dois anos para os países escreverem suas legislações”, avalia.
Mais de 50% de mulheres na liderança
Se a equidade na remuneração está longe de ser uma realidade abrangente por aqui, há exceções que trazem progressos significativos nesse sentido. Uma delas ocorre na Natura &Co.
Recentemente, a empresa anunciou que deu um fim às diferenças salariais. “Aquelas que não se justificam por variáveis legítimas, que são fruto de um processo histórico de discriminação social”, complementa Mariana Talarico, diretora de cultura e desenvolvimento organizacional.
O avanço faz parte de um plano de sustentabilidade da Natura &Co apresentado em 2020, com foco em enfrentar questões como diversidade, equidade e inclusão. “Criamos mecanismos que nos ajudam a fazer a gestão da equidade durante o ano, considerando as admissões e os movimentos salariais que ocorrem além do ciclo de revisão salarial”, diz.
A executiva esclarece que o grupo já vinha trabalhando com metas nesse sentido desde 2014. Já em 2020, a divisão para a América Latina alcançou 50% de mulheres no conselho de administração. E na alta liderança fechou 2022 com um índice ainda maior: 52%. “Além disso, consideramos a porcentagem de mulheres nesses postos como meta para resultados de PLR e bônus”, conta Talarico. “Acreditamos que a liderança feminina enriquece a diversidade de olhares da gestão, amplia as possibilidades de inovação e rompe estereótipos.”
Uma das iniciativas mais importantes foi desenvolver estudos anuais sobre a equidade salarial no grupo, baseados em dados de salário, gênero, cargo, nível de experiência e desempenho, entre outros. Além disso, a Natura realizou mudanças que promovem a corresponsabilização na criação dos filhos, oferece apoio a mulheres em situação de violência de gênero e realiza campanhas de conscientização.
Progresso ano após ano
Outra empresa que se destaca nessa busca por igualdade é a filial brasileira da Danone. Como na Natura, 50% de suas posições de liderança são ocupadas por mulheres.
O processo que levou a esse resultado teve início em 2017. Foi quando a multinacional passou a exigir que as áreas de remuneração de todos os países reportassem qual era a situação salarial, de ambos os sexos, desde o primeiro nível de cargo gerencial até os altos executivos. “O foco em gestores se baseou na realidade da nossa sociedade e nos vieses inconscientes contra os quais temos de trabalhar”, diz Giselly Viveiros, gerente de remuneração e benefícios. “É na liderança que a mulher realmente passa a enfrentar questões de gênero na negociação salarial e na maior dificuldade de entrada. É quando o indicador de equidade começa a se deteriorar.”
As primeiras providências foram tomadas assim que o monitoramento da Danone revelou a distinção: o salário dos homens estava, em média, seis pontos percentuais acima do das mulheres na mesma função.
“Passamos a dar visibilidade a essas diferenças a cada revisão salarial e a cada contratação. Assim, ano a ano, o gap foi diminuindo, até acabar em 2022, três anos antes da meta global.”
Viveiros conta que, entre as ações da empresa, houve mudanças em relação à licença-maternidade. No retorno ao trabalho, a mulher passou a contar com uma política que busca garantir que ela consiga conciliar a vida profissional com o papel de mãe ou cuidadora. No caso de uma viagem pela empresa, por exemplo, ela pode levar crianças pequenas e um acompanhante.
Ou seja, é uma questão de salário, sim. Mas não só. A equidade implica outras iniciativas no mercado de trabalho. E isso inclui decisões da alta gestão que não prejudiquem a mulher por conciliar seus diversos papéis na vida – de modo que ela possa entregar o máximo do seu potencial. Se ela ganha com isso, seus empregadores ganham também. Algo que deveria ser óbvio para qualquer organização.