Paixão onde se ganha o pão
Relacionamentos entre colegas são parte da natureza humana. Mas o RH deve estabelecer limites e saber lidar com casos como a promoção de um ou a separação.
Imagine o cenário a seguir. João e Maria moram na mesma região, têm idade parecida e se conhecem no local de trabalho. Poderia ter sido num barzinho, num app de relacionamento, mas foi, não à toa, no lugar onde passam oito horas por dia. Surge uma afinidade entre eles, que se concretiza em algo mais após o expediente. Ambos são pares, vida que segue.
O tempo passa e Maria recebe uma promoção. Torna-se chefe do namorado. Agora pode indicar promoções e aumentos de salário. É ela quem bate o martelo sobre quem folga na escala de Carnaval. Mesmo que João seja um bom funcionário, terá de provar, mais do que qualquer um, que merece cada benefício. Ainda assim, os colegas podem enxergar favorecimento – e a torta de climão se instalará no setor. Um escritório dividido entre preteridos e preferidos é a receita para destruir o ambiente em qualquer organização.
A regra da empresa de João e Maria é clara: se o casal não informar o conflito de interesse no formulário anual solicitado pelo empregador, pode ser desligado por infringir uma regra. Por outro lado, se contarem a verdade, a organização terá de lidar com o romance, mas sua abordagem talvez seja prejudicial para a carreira de João ou Maria – e até para o próprio negócio. E agora?
Nossos João e Maria não são personagens de um conto de fadas. Esse é um caso real que ocorreu numa rede brasileira do varejo – as companhias, de modo geral, preferem o anonimato ao tocar no assunto, espinhoso demais, ou nem falar dele. O namoro descrito ilustra um dos inúmeros desafios associados ao envolvimento amoroso de funcionários. Separação, demissão de um dos cônjuges e até ciúme quando um dos dois é promovido – especialmente se for ela… Esses são apenas alguns exemplos que acontecem em qualquer corporação. E que vão continuar acontecendo.
Namoros acontecem. Ponto
Segundo uma pesquisa recente da americana SHRM, quase um em cada quatro (24%) dos trabalhadores dos EUA já tiveram algum relacionamento no trabalho, e 17% oficializaram a união. Um estudo do Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop) mostrou dados semelhantes. Entre os entrevistados 35% já tiveram relações sexuais com colegas e 14% conheceram o atual companheiro ou companheira na firma.
Todos os entrevistados para esta reportagem concordam que é impossível evitar romances. “A gente passa a maior parte do tempo na empresa. É natural que pessoas que trabalham juntas tenham interesses em comum e eventualmente se envolvam. Assim como os colaboradores se tornam amigos no ambiente corporativo, eles se apaixonam”, afirma Candice Fernandes, diretora da Stato, divisão de outplacement e transição de carreira da Gi Group.
Grácia Fragalá, membro do conselho deliberativo da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV) faz coro. Ela conta que, quando começou a trabalhar, havia uma crença de que o funcionário deveria desligar a chavinha “pessoa física” e se transformar em “pessoa jurídica”. Essa, aliás, é a premissa da série Ruptura (Apple TV+), um thriller psicológico no qual uma equipe de funcionários tem as memórias cirurgicamente divididas entre vida profissional e pessoal – com consequências nefastas.
Se até na ficção dá ruim, o que dirá na realidade… “O ser humano é indivisível. A gente não controla sentimentos, mas pode lidar com isso dentro do trabalho para que o relacionamento não prejudique nem o casal, nem o resultado da empresa”, diz Fragalá.
Um dos riscos inerentes a ter casais no mesmo time é quando há separação. Principalmente se a desunião não for amigável. O melhor que o RH e as lideranças podem fazer, nesse caso, é trocar a área de trabalho de um dos dois – se possível – para que a interação seja mínima. Isso pode evitar a perda de um talento importante para a empresa. E, como lembra Fragalá, separar-se não é de forma alguma infringir alguma regra da companhia.
Mas, antes de tudo, vale a pena uma conversa franca com os dois e identificar o quanto isso será um transtorno (há muitos ex-cônjuges que convivem amistosamente) para eles e para a equipe. Talvez o problema seja mais simples do que parece.
É proibido proibir
Para evitar embaraços, parece mais fácil baixar uma regra proibindo que os funcionários criem vínculos amorosos. Caso aconteça, um dos dois sai da empresa e pronto. Só que as organizações não podem fazer isso.
O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 garante que são invioláveis os direitos à intimidade e à vida privada dos indivíduos. “A Constituição é nossa regra maior. Nenhuma norma inferior, como um código de conduta, pode feri-la”, afirma a advogada trabalhista Isabelli Gravatá, professora de Direito do Trabalho da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “O que a empresa pode é vetar demonstrações de afeto dentro dos seus limites.”
Mesmo sendo inconstitucional, porém, o veto a relacionamentos existe na prática. “A maior parte das empresas descumpre a lei, proibindo relacionamentos. É um contrassenso, porque mesmo a legislação trabalhista prevê que membros de uma família podem trabalhar no mesmo lugar e que, se desejarem tirar férias juntos e não for prejudicial ao serviço, podem requerer esse benefício”, explica a advogada.
Em 2015, a 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, no Rio Grande do Sul, reverteu uma demissão por justa causa de um funcionário dispensado por namorar uma colega. O entendimento confirmou a sentença da juíza titular da Vara do Trabalho de Rosário do Sul: “Se há discrição e profissionalismo, ou seja, se a relação profissional não é prejudicada pelo relacionamento amoroso, qualquer ingerência do empregador exorbita os limites do poder diretivo patronal”. Há outras jurisprudências no mesmo sentido.
Isabelli Gravatá, de qualquer forma, ressalta um ponto importante: o veto corporativo também serve como uma tentativa de evitar casos de assédio: “É quando a pessoa fica constrangida e acaba se relacionando porque o flerte veio do seu chefe”.
Seja como for, relações afetivas entre colaboradores são um tema inevitável, já que vão acontecer com ou sem proibição. E a pergunta que fica é: como o RH deve lidar com esse cenário?
O combinado não sai caro: como o RH deve agir
O primeiro passo é colocar o assunto na mesa. “Esse tema tem que deixar de ser um tabu corporativo. É preciso falar para os colaboradores que relacionamentos podem acontecer, quais são os riscos envolvidos e como proceder”, aponta a filósofa e consultora de RH Gabriela Bavay.
O segundo passo é estabelecer combinados. Os códigos de ética e conduta ajudam a estabelecer regras claras e prevenir situações embaraçosas. “Eu não posso interferir no íntimo das pessoas, mas eu posso dizer que o ambiente corporativo tem uma expectativa de comportamento assim e assado”, diz Candice Fernandes.
Quanto mais claras forem as regras corporativas, menos margem haverá para dúvidas e distorções. “Conflitos são inerentes aos seres humanos. Mas é possível administrá-los bem na medida em que há uma governança sólida e estabelecida, com políticas bem comunicadas e bem administradas”, diz Grácia Fragalá.
Se, por um lado, normas ajudam a evitar conflitos, por outro é preciso tomar cuidado para não simplificar o que não é complexo por natureza. “Antes de existir governança escrita, havia o bom senso para mediar conflitos de interesse e preservar as decisões das empresas. Quando as regras foram escritas, o trato pessoal foi distanciado”, reflete Danilo Dias, diretor da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH).
Para ele, nenhuma diretriz empacota todos os conflitos possíveis, tampouco substitui uma boa conversa presencial: “Cada situação requer, de acordo com a cultura da empresa, uma solução respeitando a regra, mas desde que não crie mais confusão”.
Quando as relações são bem-vindas
Um contraponto às empresas que evitam tocar no assunto é o Grupo Santa Joana. Seus 4 mil colaboradores, sendo 70% mulheres, são livres para se relacionar com quem quiserem.
A instituição de 75 anos é formada pelos hospitais Pro Matre Paulista, Hospital e Maternidade Santa Joana e Hospital e Maternidade Santa Maria. “A nossa política é muito transparente nesse sentido. Não há nenhum tipo de impedimento para que casais se relacionem e inclusive formem famílias. Temos vários exemplos de pessoas que começaram a namorar, se casaram e tiveram os filhos nas nossas maternidades”, afirma Lissandra Cunha, gerente de desenvolvimento institucional.
O Grupo Santa Joana é uma empresa familiar, atualmente administrada pela segunda geração dos Amaro. Lisandra Cunha, então, acredita que vetar a presença de casais seria algo contraditório. “Temos pais, filhos e irmãos no nosso quadro de funcionários”, diz. “A única recomendação do RH é de que não exista relação de liderança e subordinação entre casais”, diz.O código de conduta das maternidades do grupo estabelece regras gerais para todos. “Nunca sentimos a necessidade de criar uma política clara e específica sobre romances. Já houve separações entre colaboradores, mas nada que interferisse no dia a dia da empresa”, diz a gestora.
Para ela, essa liberdade contribui para o clima corporativo e até facilita a vida das pessoas. Afinal, é notório que profissionais de saúde têm uma jornada de trabalho com plantões e horários pouco ortodoxos. Relacionar-se com alguém da mesma empresa, em casos assim, pode facilitar a compreensão conjugal com a rotina fora do padrão.
No caso de João e Maria, os personagens do início desta reportagem, o casal declarou o conflito de interesse aos empregadores. O RH, então, sugeriu que João mudasse de turno, mas a solução se mostrou inviável, porque o colaborador conciliava trabalho e estudo. O casal conversou e decidiu que ele abriria mão do emprego, uma vez que Maria trilhava uma carreira de liderança, e o relacionamento era sério.“
Quando o RH está preparado para lidar com o assunto e os colaboradores são instruídos sobre como agir, fica mais fácil para todo mundo”, aponta Gabriela Bavay. Ela própria conheceu o marido no trabalho. Foi no Club Med, onde atuava como GO – sigla para gentil organizador –, e ele se hospedava.
“O relacionamento era liberado em todas as instâncias, em todas as hierarquias. As regras eram muito claras. Só não podia se relacionar com menor de 18 anos e deixar transparecer o relacionamento no hotel”, conta ela, já há 15 anos com o companheiro. “Para adultos criamos regras de adultos, não de crianças.” Com a dose certa de bom senso, dá para respirar livremente quando o amor está no ar.
O que fazer
Como os RHs podem atuar para prevenir conflitos e, ao mesmo tempo, preservar a privacidade dos colaboradores.
Assunto na pauta – Os relacionamentos não vão deixar de existir porque a empresa não fala sobre isso. Rodas de conversa, palestras e outros canais de comunicação interna podem preservar a instituição e, ao mesmo tempo, educar os trabalhadores sobre como agir em cada caso. “Se esse é um tema que preocupa a companhia, por que não usar as datas comemorativas, como o Dia dos Namorados, para discutir o assunto do ponto de vista da ética e do compliance?”, sugere Grácia Fragalá, da ABQV.
Equilíbrio, na medida do possível – Ok, as pessoas podem se relacionar. Mas existem limites que precisam ser estabelecidos. Da mesma maneira que a empresa não pode intervir na vida das pessoas, a pessoa não pode trazer sua vida para dentro do trabalho. “O RH pode estabelecer programas para ajudar as equipes a manter o equilíbrio entre os diferentes papéis sociais. Isso serve não só para casais, mas para qualquer um do quadro de colaboradores”, afirma Fragalá.
Regras claras – “Ninguém, por livre e espontânea vontade, vai avisar a empresa que está em um relacionamento. A pessoa só vai fazer isso se houver clareza a respeito de regras e do impacto dessa medida na sua carreira”, aponta Danilo Dias, da ABRH. Se a organização quer transparência dos colaboradores, precisa ser transparente também.
Sedução x assédio – Qual é o limite entre a sedução e o assédio? A comunicação interna deve explicar a diferença, principalmente quando há relação de hierarquia. Usar da autoridade para pressionar um subordinado caracteriza assédio sexual e deve ser reportado ao RH.
Flexibilidade – A empresa pode facilitar a vida de funcionários que se separaram e estão se detestando, mas não trouxeram uma perturbação para o ambiente de trabalho. “Nesse caso, o RH pode realocar essas pessoas para áreas em que elas não precisem trabalhar mais juntas. Esses colaboradores não infringiram nenhuma regra”, diz Gabriela Bavay.
Mais comum do que se imagina
Uma pesquisa realizada pela SHRM (Sociedade para Gestão de Recursos Humanos) nos EUA mapeou relacionamentos entre colegas de trabalho por lá. Veja os resultados.
24% tiveram alguma relação com um colega.
17% oficializaram o relacionamento.
75% sentem-se confortáveis com o fato de que colegas estão envolvidos num relacionamento com uma pessoa da empresa.
18% disseram já ter namorado com algum de seus superiores.
10% disseram já ter namorado com algum de seus subordinados.
Este texto faz parte da edição 90 (fevereiro/março) da VOCÊ RH. Clique aqui para conferir os outros conteúdos da revista impressa.