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“O ser humano não será substituído por robôs”, afirma Miguel Nicolelis

Em entrevista a VOCÊ RH, neurocientista diz que empresas têm adotado tecnologias porque viraram moda, sem dados que comprovem que são revolucionárias

Por Letícia Furlan
Atualizado em 27 jan 2023, 10h27 - Publicado em 24 ago 2022, 07h59
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édico neurologista e neurocientista, o paulistano Miguel Nicolelis defende que o ser humano desenvolveu uma necessidade permanente de satisfação hedônica. “Muitos jovens não conseguem lidar com o fato de que a vida não dá recompensas a cada instante, como em um videogame”, diz. “E o cérebro vive de criar expectativas do que o mundo vai nos oferecer, calibrando seu funcionamento a partir desse modelo de recompensa. Quando a recompensa é menor do que a esperada, vemos a atividade do cérebro se modificar de forma nítida.”

Na visão dele, é preciso estar mais atento ao uso das tecnologias — e à importância atribuída a elas. “As tecnologias, por si só, não são prejudiciais, mas quando você tenta vender a narrativa de que sistemas tecnológicos são superiores à mente humana, começa a entrar em uma área perigosa.”

Assim como em diversos segmentos, a gestão de pessoas tem sido afetada pela criação de produtos e serviços cada vez mais avançados. A promessa de que essas soluções vão revolucionar processos como recrutamento, seleção e análise de desempenho é tentadora e desafiadora para o setor que lida, em sua essência, com o capital humano. 

Em entrevista a VOCÊ RH, Miguel, que veio ao Brasil para um evento realizado pela empresa de benefícios corporativos Flash, fala sobre o impacto do avanço das tecnologias no trabalho e nas relações humanas, além de explicar a teoria que defende em seu livro O Cérebro Relativístico: Como Ele Funciona e Por Que Ele Não Pode Ser Simulado Por Uma Máquina De Turing, escrito em parceria com o matemático Ronald Ciruel.

O que é o cérebro relativístico? 

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É minha teoria que explica como o cérebro funciona. O nome vem de uma noção de que ele não é definido nem pelo que existe fora dele, nem pelo que existe dentro dele, mas sim por uma comparação. Ou seja, ele relativiza, comparando um modelo interno de realidade com o que ele absorve no mundo exterior. O termo é utilizado de uma maneira muito semelhante ao utilizado na teoria da relatividade.

Como as tecnologias modificam o funcionamento desse cérebro?

Ao longo de nossa vida, o cérebro vai se refinando, tentando se atualizar com o que ele obtém do mundo exterior por meio de nossos sentidos e experiências. Por isso digo que as nossas invenções, as ditas tecnologias, influenciam a nossa mente e o futuro da humanidade. 

Toda a tecnologia que criamos desde os primórdios da nossa espécie é assimilada pelo cérebro como se fosse uma extensão do nosso próprio corpo. Quando, lá atrás, criou-se o machado para ser utilizado na caça, essa tecnologia passou a fazer parte da extensão do senso de ser daquele indivíduo. Hoje, nossos carros e nossas bicicletas, por exemplo, tudo aquilo que inventamos para ampliar a nossa ação, vira parte da gente.

Nos últimos anos, desde a Revolução Industrial e, principalmente, na Revolução Computacional dos anos 1940, esse processo se acelerou de uma maneira muito dramática. Ele passou a interferir de maneira muito mais incisiva na forma como pensamos e agimos. As tecnologias digitais passaram a realmente modificar de maneira importante os comportamentos humanos muito básicos. 

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Como as novas tecnologias afetam as relações humanas?

Isso foi muito percebido durante a pandemia. O uso de celulares e videochamadas, por exemplo, alterou nossa dinâmica social, que é um dos fatores mais importantes de atuação do ser humano desde sempre. Desde o começo da nossa espécie, a dinâmica social foi algo vital para definir o cérebro que temos hoje. 

À medida que você remove essas interações sociais do dia a dia físico, tangível, você começa a alterar certos atributos fundamentais da nossa cognição — a empatia humana, o sentido de pertencer a um grupo social, como você vê o próximo.

Não à toa, muitos cientistas debatem os efeitos que os filmes e os videogames tiveram, nos últimos 40 anos, no conceito de como o ser humano vê a morte, porque ela foi trivializada. As crianças matam pessoas em jogos, por exemplo, e isso começou a modificar a forma com que lidamos com a perda de uma vida humana. É só imaginar como a perda de uma vida era relatada na Odisseia ou na Ilíada, por Homero, e como hoje é relatada em uma reportagem de televisão. 

Com isso, notamos uma redução dramática da empatia humana em relação à perda. Para os gregos antigos, a morte era uma catástrofe, pois o que aquela vida experimentou jamais será reproduzido no universo. Hoje, uma morte passa despercebida, como se fosse um fato corriqueiro. Isso é um produto da maneira com que interagimos no nosso dia a dia.   

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Existem, ainda, outras questões, como a padronização do pensamento, a perda da espontaneidade, da criatividade, da intuição. Coisas que, antes, eram valorizadas acima de qualquer coisa.

De que maneira ocorreu essa perda?

Quando eu comecei a fazer ciência, há 40 anos, a intuição era valorizada acima de qualquer coisa. Você basicamente era julgado pela sua capacidade de criar, de sair da caixa, de fazer coisas que ninguém imaginou. E, hoje em dia, muito da ciência é voltada para que tipo de tecnologia você usa. 

Mas as tecnologias são importantes?

São importantes, são fundamentais, mas vieram do ser humano e só serão úteis se você tiver ideias criativas e souber fazer sínteses a partir das tecnologias, que por si só não geram o conhecimento. O conhecimento precisa de um agente pensante, que somos nós. Isso, no entanto, está sendo esquecido.

As pessoas acham que é só colocar um computador ou um celular na mão de uma pessoa que você vai gerar algo novo. Pelo contrário, vai gerar massificação do comportamento, mas não necessariamente inovação.

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A tecnologia é produto da abstração humana, da ingenuidade humana de criar abstrações e ampliar a nossa ação no mundo. Ela pode tanto nos causar grandes avanços, como pode causar grandes problemas. Como, por exemplo, eliminar da mente humana todos os atributos que nos trouxeram até aqui com certo sucesso evolucional.

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As tecnologias criadas recentemente são prejudiciais para os seres humanos?

As tecnologias por si só não são prejudiciais, mas quando você tenta vender a narrativa de que sistemas tecnológicos são superiores à mente humana, começa a entrar em uma área perigosa. Primeiro, porque não são. Afinal, nenhum computador vai gerar uma sinfonia de Beethoven ou um grande clássico da literatura, o que eles podem é copiar, mas não haverá a criação de algo novo. Desde que o mundo é mundo, tentamos atribuir até mesmo a abstrações, como deuses e seres mitológicos, um poder maior que o do ser humano. E fazemos isso também com as tecnologias.

Temos como exemplo disso a Revolução Industrial, quando acreditava-se que as máquinas a vapor poderiam ser superiores ao homem. E agora estamos na era dos robôs, dos sistemas digitais. Mas nenhum sistema algorítmico será capaz de reproduzir a complexidade dos comportamentos cognitivos humanos. Não teremos um algoritmo de criatividade, de intuição. 

Nenhum sistema digital vai ter o grau de complexidade que a mente humana, isolada ou em grupo, tem. Mas, se você convence a humanidade do contrário, você tem um instrumento de controle de poder muito grande. Ao reduzir o valor do trabalho humano, você recompensa menos ele e aumenta o seu lucro exponencialmente.

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O desenvolvimento e o avanço das tecnologias oferecem riscos ao emprego?

Os sistemas digitais nunca vão substituir a criatividade de um indivíduo, muito menos de uma coletividade, porque são restritos. Eles não criam coisas novas, não são capazes de abstrair. Por outro lado, você vê gente tentando vender essa utopia. Se você destruir todos os empregos, quem é que vai consumir? Se a automação continuar nesse ritmo, alguns especialistas especulam que o desemprego possa chegar a 50% em 30 anos. Se isso de fato acontecer, como vamos fazer as economias funcionarem se as pessoas não vão mais consumir?

Quando você transforma o ser humano em uma mercadoria, você destrói o contrato social que existe desde que o mundo é mundo. O contrato de que vendemos nosso trabalho por um valor que consideramos justo e aceitamos que existam representantes em uma democracia que definem quais serão as normas desse contrato social. Mas, a partir do momento que você vira uma mercadoria, com seus dados sendo comercializados, a conta passa a não fechar.

Você tem como automatizar certas coisas, mas não todas. Você pode forçar a barra, criando falsas versões que as pessoas vão aceitar por estarem sendo bombardeadas há décadas com a ideia de que o computador vai nos superar. E, matematicamente ou cientificamente, nunca ninguém provou isso.

Como fazer bom uso das tecnologias na gestão de pessoas?

Quanto mais você automatiza as rotinas, quanto mais você elimina o intermediário humano e coloca o intermediário algorítmico, mais você despersonaliza o processo. Nós aprendemos, e está no nosso DNA, a confiar muito mais na percepção de uma reação humana do que na de uma máquina — a máquina é impessoal e nem todo caso é igual. 

Eu sei que existe uma pressão muito grande, até no mundo acadêmico, de tentar automatizar certas rotinas. Mas muitas empresas adotam ferramentas porque viraram moda, sem muitos dados que comprovem a tese de que elas de fato são revolucionárias. 

Sempre utilizo o exemplo da Amazon. Lá, eles têm uma pulseira que controla quanto tempo cada empregado leva para processar cada pedido, e isso tem levado as pessoas à loucura. É um micromanager que vai determinar se a pessoa vai permanecer no emprego ou não. E outra, qual o nosso objetivo final? Apenas a produtividade? Será que essa é a única métrica que vale ser levada em conta? Eu acho que não. Sei que a métrica do mundo empresarial é o lucro, mas, às vezes, o barato sai caro no longo prazo. Precisamos manter isso em mente, principalmente lidando com tecnologias que têm efeito tão impactante na maneira com que a gente pensa e na maneira com que a gente se comporta.

Devemos, então, criar limites para a tecnologia?

Ninguém vai se libertar dela, porque nossa vida está imersa nisso. Se nos livrarmos da tecnologia, deixamos de conviver, além de perdermos oportunidades na vida. 

Mas acho que precisamos tirar horas do dia para conviver de outras formas, conviver da forma com que nosso cérebro evoluiu para conviver, ou seja, analogicamente. O que você pode fazer é encontrar com as pessoas, ler um livro físico, nadar, correr, estar em contato com a natureza. Executar pequenas ações que remontam a como nosso cérebro evoluiu para se comportar é quase um episódio de libertação. Eu começo a qualificar isso como terapia mental: manter sua mente funcionando da maneira com a qual ela naturalmente evoluiu para funcionar.

Qual a relação entre a exposição às telas e a saúde mental?

Tendo em vista a importância das relações humanas, quando passamos mais tempo em frente a telas do que interagindo e convivendo, começamos a gerar problemas cognitivos que levam, até mesmo, à ansiedade e à depressão. Achamos que estamos hiperconectados, falando com várias pessoas, mas, ao mesmo tempo, a falta do convívio físico, real, gera uma série de problemas, porque nós evoluímos para conviver em grupos sociais.

Em qualquer lugar do mundo você vai encontrar rituais sociais que envolvem grupos. Sejam eles festas, manifestações, sejam até mesmo rituais religiosos, que foram criados para isso. Mas estamos substituindo todos eles pelo celular, que altera a maneira como a gente pensa e interage, o que tem repercussões, pois o cérebro é um camaleão.  

Hoje, temos uma necessidade da satisfação hedônica. Muitos jovens não têm conseguido lidar com o fato de que a vida não te dá recompensas a cada instante, como em um videogame ou em uma interação no metaverso. O cérebro vive de criar expectativas do que o mundo vai nos oferecer e calibra seu funcionamento a partir desse modelo de recompensa. Quando a recompensa é menor do que a esperada, vemos a atividade do cérebro se modificar de forma nítida.

O que podemos esperar para o futuro com o avanço tecnológico?

Não vai ser agora, nem amanhã, mas, ao longo do tempo, estamos fazendo seleções para uma nova espécie de seres humanos. Porque se a recompensa do mundo atual, ou do mundo real, for quem se adapta à lógica digital, você começa a influenciar quem vai sobreviver e quem não vai, quem vai ter a chance de passar o DNA e quem não vai. São essas pressões seletivas que geram divergências de espécies. 

A vasta maioria dessas seleções que nos trouxeram até aqui foram por fenômenos naturais ou mutações genéticas, mas nada impede que uma mudança de contexto tão dramática não ajude a selecionar um novo tipo de ser humano — eu o chamo de homo digital. Ele seria uma espécie hominídea sem os atributos emocionais e cognitivos que caracterizam a nossa espécie. Ele funcionaria na lógica digital, sem nuances emocionais ou cognitivas, mas seria um tipo de ser humano.

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