Assine VOCÊ RH por R$2,00/semana
Continua após publicidade

A importância de deixar um legado no trabalho

Lideranças menos preparadas para desenvolver pessoas e liderados que abrem mão de cargos mais altos são os novos desafios para os planos de sucessão

Por Caroline Marino
Atualizado em 24 jan 2023, 16h59 - Publicado em 2 dez 2022, 07h48
V

er a si mesmo como líder é o primeiro passo para se tornar um. Essa é a conclusão de uma série de estudos recentes conduzidos por pesquisadoras das universidades de Michigan e da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, com mais de 1.700 pessoas. A questão é que, atualmente, muita gente não almeja postos mais altos na hierarquia, mesmo tendo competências e perfil para ocupar essas posições. Os motivos são vários.

Segundo a análise, publicada no Academy Management Journal, existem três medos comuns que afastam os profissionais dos cargos de gestão, especialmente entre grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras: parecer autocrático, mandão ou dominador; perder o senso de pertencimento à equipe, já que receberá tratamento diferenciado em relação aos demais; e parecer desqualificado para a função, fazendo com que não se sinta levado a sério. Aqueles que relatam níveis mais elevados desses receios são menos inclinados a agir como líder, portanto, menos propensos a serem vistos como líderes pelas chefias.

Mas é possível influenciar positivamente essas pessoas. Para isso, dizem as pesquisadoras, é necessário mostrar que a liderança não é algo nato, mas uma habilidade que pode ser aprendida. Na prática, as empresas precisam de gestores que inspirem, desenvolvam e deixem um legado. Essa mentalidade define o futuro das companhias e deve estar no cerne dos processos de sucessão.

Mas planejar a continuidade das funções é mais do que preencher vagas — é uma estratégia de gestão que amplia o engajamento dos profissionais com potencial de ascender e contribui para o desenvolvimento de competências necessárias para a companhia responder às mudanças de um mercado volátil e competitivo. Trata-se de um plano vivo, que deve ser atualizado com frequência de acordo com os novos desafios. “Mas o que acontece é que muitas empresas não identificam nem preparam os talentos”, afirma Joel Dutra, professor da Universidade de São Paulo e autor do livro Gestão do Processo Sucessório – Preservando o Negócio e a Estratégia. “Quando surge uma demanda, ficam pensando em quem pode assumi-la.” Segundo estudos conduzidos por Joel, 70% das companhias não trabalham no desenvolvimento e na retenção dos talentos identificados. “Como consequência, há uma perda de profissionais-chave de, em média, 30% ao ano”, diz o professor.

E os prejuízos não param por aí. Em um estudo publicado na revista Harvard Business Review, os pesquisadores Claudio Fernández-Aráoz, Gregory Nagel e Carrie Green constataram que a falta de atenção para as práticas de sucessão, principalmente da alta liderança, gera uma perda de 1 trilhão de dólares ao ano para as empresas. O prejuízo está relacionado a práticas ruins, como a contratação de um CEO externo inadequado.

Continua após a publicidade

Evitar esse problema não é tão complexo quanto parece. Envolve iniciar o planejamento de sucessão bem antes de precisar dele, realizar ações de desenvolvimento com os profissionais identificados, nomear os executivos mais promissores para o Conselho, preparando-os para assumir o alto escalão, e olhar com frequência para os candidatos internos e externos. O levantamento aborda os cargos mais altos, como o de presidente, mas o tema deve ser trabalhado em todos os níveis e desde a entrada do funcionário.

Para que o trabalho tenha os resultados esperados, é importante que a área de recursos humanos seja a grande articuladora do programa. “O papel do RH é diminuir vieses antigos e desenvolver líderes que tenham perspectiva de crescimento e visão de longo prazo”, diz Weider Campos, consultor da Egon Zehnder, empresa de gestão de executivos.

Redefinindo o potencial

As transformações do mundo do trabalho e das expectativas dos profissionais requerem uma repaginação dos processos de sucessão. “É preciso pensar em algo mais móvel, não apenas focado em estratégias engessadas por silos e sem observar os interesses de carreira dos indivíduos”, afirma Rafael Souto, presidente da consultoria Produtive. Só assim é possível contemplar um desafio que vem se acentuando nos últimos anos: profissionais que não querem assumir postos de liderança, por priorizarem a saúde e a qualidade de vida. Um estudo da Cia de Talentos mostra que jovens em cargos de média e alta gestão relatam frequentemente piora no bem-estar emocional, sobrecarga de trabalho e sensação de exaustão. E metade pretende pedir demissão (veja quadro). “Aquele modelo antigo, de entrar numa organização como trainee e, com o tempo, virar gestor, está em xeque”, diz Rafael.

Gráfico
(VOCÊ RH/VOCÊ RH)

Para enfrentar as atuais dificuldades da sucessão, Luiz Barosa, sócio da consultoria Deloitte, sugere adotar como base do planejamento a seguinte pergunta: o profissional tem potencial para quê? “Há outras formas de crescimento além da liderança, como as movimentações laterais”, afirma. Segundo ele, os modelos mais avançados de sucessão ampliam a busca de potencial para incluir não só aqueles que estão prestes a se tornar gestores. “As pessoas, atualmente, buscam coisas diferentes, como qualidade de vida e propósito, e as empresas precisam avaliar essas pretensões para realizar as movimentações de carreira”, diz.

Pensar em outras formas de crescimento e desenvolvimento é olhar com atenção a gestão da atratividade, afirma Sylmara Requena, conselheira administrativa independente, que foi vice-presidente de RH e ESG do Grupo Siemens no Brasil e acompanhou entre 2016 e 2017 a sucessão do CEO da empresa. “O programa mais adequado é aquele que mostra para o profissional, ao longo dos anos, até onde ele pode chegar”, diz. E às vezes há um limite de atratividade — a partir daquele ponto, a companhia não consegue oferecer mais opções de crescimento para alguns. “Nesse momento, ou você trabalha com uma estrutura diferente, com menos travas e mais flexibilidade [entre os cargos], ou vai perder os talentos”, diz Sylmara. Na visão dela, é importante ter em mente também que um profissional não precisa se prender a apenas uma carreira; pode ter várias. E isso abre muitas possibilidades de movimentação.

Continua após a publicidade

Atenta a esses pontos, a multinacional de seguros Chubb definiu, em 2021, um conceito de sucessão que leva em conta um pool de sucessores. A ideia é que os profissionais transitem em qualquer cargo e área, independentemente do setor em que atuam. Para isso, a empresa adotou a carreira em nuvem, em que o crescimento está atrelado aos interesses, inclusive pessoais, dos funcionários. Nesse modelo, em vez de trajetórias lineares, as pessoas podem atuar em projetos e equipes multidisciplinares, sem seguir rotas definidas. “Incentivamos e promovemos a livre movimentação, de acordo com a expectativa e o perfil de cada um”, afirma Carla Jacarini, vice-presidente de recursos humanos da Chubb. Algumas premissas permeiam as decisões de sucessão e promoção: o perfil do profissional, no que ele é bom e o que deseja para a carreira. “Se uma pessoa da área administrativa, por exemplo, tiver interesse em mudar para TI e possuir alguma habilidade para o cargo, por que não prepará-la para esse movimento?”, diz Carla.

Para comunicar esse novo entendimento de carreira, a companhia realizou workshops abordando a sucessão contemporânea e incentivando conversas sobre o assunto. “Depois de quase um ano desde o início do programa, percebemos um maior aproveitamento de talentos no recrutamento interno, com pessoas transitando entre carreiras e áreas distintas com êxito”, afirma a executiva. Segundo ela, 81% das posições abertas em 2022 na empresa foram preenchidas com profissionais que integram o pool de talentos.

Treinar e acompanhar

Outra empresa que aposta na livre movimentação é a fabricante de cervejas Heineken. A companhia revisou recentemente o mapa sucessório, passando a considerar todas as posições a partir da gerência. Atualmente, 90% dessas funções têm sucessores identificados a partir da avaliação de comitês de líderes e RH.

Para auxiliar nesse trabalho, a empresa conta com um sistema online que facilita o intercâmbio de informações entre as áreas e permite que todos os gestores visualizem o mapeamento. “A área de vendas, por exemplo, pode ver que um talento de marketing tem interesse em migrar para o setor e possui as características necessárias”, afirma Ana Carolina Guido Steck, gerente de desenvolvimento organizacional e cultura da Heineken. “Mas não basta apenas ter um mapa sucessório. O mais importante é o que fazemos para que esses talentos entendam que estão mapeados e de que forma vamos trabalhar a aceleração das skills necessárias para que, no momento em que a posição estiver aberta, o candidato esteja pronto”, diz Ana Carolina. Para isso, a empresa lançou o Shining Stars, programa de treinamento para os talentos mapeados como sucessores. Há desde parceria com consultorias externas e ações de mentoria até treinamento de imersão focado em autoconhecimento.

Gráfico Rota de Sucesso
(VOCÊ RH/VOCÊ RH)

Para 2023, o objetivo é consolidar o exercício de sucessão, expandir o público elegível às ações de desenvolvimento e trazer maior representatividade de mulheres e pessoas negras ao mapa de sucessão. A meta é ter 50% de mulheres em cargos de liderança até 2026 e 40% de líderes negros até 2030.

Continua após a publicidade

Líderes que desenvolvem

Outro ponto central para a sucessão é preparar as lideranças para acolher os novos anseios das equipes. “Gestão de carreira não é só colocar o funcionário nas prateleiras de cima com promoções automáticas, e sim fazer o gerenciamento das expectativas de maneira contínua”, diz João Lins, diretor executivo da área de cursos corporativos da FGV Brasil. E não basta compartilhar ensinamentos técnicos. “Pense em uma liderança de sucesso com a qual você já trabalhou e pergunte-se o que aprendeu com ela”, sugere João. “Você verá que recebeu bagagem de vida e segurança para seguir adiante.” E isso tem a ver com inspiração. “Um bom líder deixa esse legado porque entende que a organização não são seus ativos, como prédios, máquinas e equipamentos, e sim as pessoas e sua cultura”, afirma o especialista.

A healthtech Bionexo tem olhado com atenção para isso. Recentemente, fechou parceria com uma escola de negócios para impulsionar esse novo perfil de liderança, que busca inspirar e engajar pessoas. “O programa está dentro da nossa estratégia de contar com uma ‘liderança desenvolvedora’”, diz Patrícia Piñeiro, diretora de gente e gestão da Bionexo. A iniciativa contempla os quase 100 gestores globais da companhia, incluindo profissionais das filiais na Argentina, no México e na Colômbia, em um programa de 12 meses com trilhas customizadas de acordo com os principais desafios de cultura e engajamento corporativos.

O fortalecimento de canais e rituais de comunicação é outra ação da empresa para fomentar o desenvolvimento. Em 2021, foi implementado o People Talks, programa de escuta ativa das equipes. “São encontros quinzenais em que os colaboradores, escolhidos de forma aleatória para participar, e os gestores conversam sobre temas livres, de forma leve, para que seja possível identificar os interesses e as necessidades de cada um”, diz Patrícia. A executiva revela que a companhia avalia também adotar o job shadowing, em que funcionários podem acompanhar por determinado período os atuais ocupantes das cadeiras para as quais são preparados.

Legado geracional

A integração entre quem tem mais experiência e quem está começando agora também importa no planejamento sucessório. É que esse processo não diz respeito apenas ao líder e seus liderados, e sim ao legado que as pessoas, independentemente do cargo que ocupam, podem deixar ao sair da empresa. “Quem viveu de maneira intensa os processos inflacionários nos anos 1980 e 1990, por exemplo, sendo líder ou não, pode colaborar com mecanismos para fazer esse conhecimento fluir dentro do ambiente e conseguir melhores resultados no momento atual”, afirma João, da Fundação Getulio Vargas.

Na visão de Camila Zanchim, gerente de recursos humanos do grupo varejista GPA, olhar para a sucessão é construir uma história que vai passando de profissional para profissional, que mantém viva a cultura empresarial e sustenta a marca empregadora. “Mesmo que existam pessoas saindo para assumir novos desafios, quando você constrói o legado, preserva a essência”, afirma. “Assim, quem chega segue naturalmente aquele caminho.”

Continua após a publicidade

No GPA, que reúne marcas como Compre Bem, Extra e Pão de Açúcar, há programas de sucessão para todas as áreas e níveis, inclusive para a operação. Além da área administrativa e de gestão, os treinamentos de preparação para a liderança contemplam as drogarias e as centrais de distribuição e logística. O modelo, que passou a ser adotado em 2013, ganhou atualizações para se adequar aos novos anseios dos profissionais. “Quando o programa começou, os participantes eram apenas os colaboradores indicados. Hoje, contamos com um processo seletivo que envolve inscrição e um plano de comunicação para que qualquer pessoa que tiver interesse em crescer na companhia possa se inscrever”, afirma Camila. “Na maioria dos casos, é mais estratégico investir em programas internos de desenvolvimento do que buscar profissionais no mercado, pois temos colaboradores que se identificam com a cultura da empresa e conhecem a rotina. Geralmente são bem preparados tecnicamente, mas precisam desenvolver competências comportamentais e pensar em crescimento na carreira.”

Gráfico De Olho nas Demandas
(VOCÊ RH/VOCÊ RH)

Em nove anos, mais de 4.500 funcionários participaram do programa, sendo 72% promovidos internamente. Só em 2022 foram realizadas 26 turmas de treinamento com quase 700 participantes. O desenvolvimento focado em operações aborda temas como carreira, protagonismo e inovação, além de formação técnica, e conta com missões que devem ser cumpridas na loja para fixação e aplicação prática do conteúdo.

Esse patrimônio imaterial é maior do que a sucessão e acontece entre as áreas — trata-se de um fluxo de conhecimento que percorre a organização. “O grande legado são as pessoas que você formou ao longo de sua trajetória”, diz João Lins. “Todo mundo já teve sucessos e fracassos na vida profissional, mas se me perguntarem qual foi o Ebitda que eu gerei em 2014, por exemplo, não vou lembrar. Mas me lembro de cada pessoa que trabalhou comigo e hoje está bem posicionada no mercado — isso me dá orgulho.”

Gráfico
(VOCÊ RH/VOCÊ RH)
Compartilhe essa matéria via:

Esta reportagem faz parte da edição 83 (dezembro/janeiro) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Você RH impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.