Raros CEOs de empresas têm uma trajetória com uma visão tão abrangente sobre o RH quanto Cynthia Betti. Desde 2018, ela é a número um no Brasil da Plan International, uma organização não governamental de 85 anos, presente em 82 países, que se dedica a garantir os direitos e as oportunidades das crianças carentes, principalmente meninas – viabilizando acesso ao estudo, melhorando as condições de sua comunidade e combatendo a exploração sexual.
Antes de receber o convite para assumir essa posição, Betti trabalhou por 16 anos na Mapfre Seguros, passando a maior parte desse tempo na área de recursos humanos, onde galgou todas as posições. Foi de analista a diretora de RH, com um intervalo no setor de planejamento estratégico. Essa jornada de carreira, diz a própria executiva, serviu como uma preparação para os desafios que enfrenta hoje no terceiro setor. Foi quando sentiu na pele a resistência ao protagonismo das mulheres e teve o primeiro contato com os preceitos do capitalismo consciente e seu foco no propósito das organizações – algo que teve grande influência em sua transição para a ONG.
Nesta entrevista, Cynthia Betti compartilha essa perspectiva privilegiada de CEO com visão crítica do RH, apontando caminhos e os pontos em que tanto o C-Level como os profissionais de recursos humanos poderiam melhorar. Sugestões para que o setor cumpra todo o seu potencial: torne-se, ao mesmo tempo, mais estratégico e mais humanizado.
Ao longo da sua trajetória no RH da Mapfre, houve um período em que você teve um intervalo na área, indo trabalhar com planejamento estratégico. Como foi isso e sua volta ao setor?
Eu tinha de fazer o planejamento da empresa como um todo, de todas as áreas. E aí passei a olhar o RH de fora, o que foi uma experiência incrível. Até que veio um convite para voltar para a área de recursos humanos, mas aí já como diretora. Só que retornei com essa visão estratégica, de cliente do RH, às vezes não tão satisfeita com o que estava sendo oferecido. Minha missão era mesmo aproximar o RH do negócio.
Como foi essa mudança de estilo na área?
Criamos, dentro do RH, uma área de controles e indicadores, e transformamos tudo em números. Por exemplo, promovíamos diversos treinamentos, mas muita gente não ia. Aí, sendo uma empresa de seguros, nós transformamos essas ausências em apólices. Falávamos: “Vamos ter de vender mil apólices a mais porque tantas pessoas não foram ao treinamento”. Começamos a adequar a linguagem do RH à linguagem do negócio, do C-Level.
Que desafios você encontrou nesse período?
O principal foi a falta de diversidade. Eu era a única mulher e, conversando com outras que tinham algum cargo de liderança, descobri que sempre havia muito mais homens nas equipes delas. Quando organizei um grupo de mulheres para discutir essa questão, alguns diretores passaram a dizer que eu estava criando o “clube da Luluzinha”. E eu respondia: “Mas aqui a gente vive no ‘clube do Bolinha’”. Ainda assim, criamos um programa de mentoria para mulheres que poderiam ocupar cargos maiores. Percebi que uma mulher num cargo acima precisa puxar outras.
Essa percepção rendeu outras reflexões sobre o ambiente corporativo?
À época, não tantas. Eu acreditava muito em meritocracia. Vim de uma família muito simples, frequentei escola pública, comecei a trabalhar com 16 anos, fui balconista de doceria… e cheguei lá. Só que eu sou uma mulher branca, né? De cabelo claro, olhos verdes. E só percebi isso quando vim para o terceiro setor. Conseguimos colocar muitas mulheres em cargos de liderança, mas quantas delas eram negras? Não tinha. Em 2014, implantamos um conselho de diversidade na Mapfre quando ninguém falava disso. Fomos a primeira seguradora a assinar o compromisso do Fórum das Empresas LGBT [na época, a sigla se resumia a essas letras].
O que, então, abriu sua cabeça de vez em relação a essas questões?
Fui a um congresso em Chicago sobre capitalismo consciente. Saí de lá entendendo que a gente precisa ter um propósito. Para uma seguradora, o propósito dela é proteger as pessoas. Mas as empresas vão perdendo essa noção ao longo do tempo. O foco vira dinheiro para os acionistas e bônus para os executivos. Então virei a xiita do capitalismo consciente. Houve gestores que me apoiaram nesse caminho, mas outros eram contra.
Por que você decidiu deixar uma posição de diretoria numa grande empresa para se tornar líder de uma ONG?
A decisão de sair foi muito bem pensada. Eu fiz um coaching de carreira, refletindo o que eu queria fazer nos meus próximos setênios… E eu lembro de dizer: “Quando estiver aposentada, vou trabalhar no terceiro setor”. Eu já pensava no assunto em 2014, 2015, mas só fiz a transição em 2018. Minha tristeza foi deixar a equipe que eu tinha. Porque nós fizemos muita coisa, mas fazer muita coisa ali me custou demais. Eu não sabia o que era mansplaining, manterrupting… e vivia isso o tempo todo. Tinha dificuldade de me colocar nas reuniões, de ser ouvida, respeitada. Chegou um ponto em que precisava ser mais gentil comigo mesma e seguir os meus propósitos sem tanta rejeição.
O que poderia mudar para melhor nos profissionais de RH?
Quando cheguei para liderar a Plan International, eu tinha uma sala. Então dispensei aquele espaço e hoje me sento no meio da equipe. O RH também tem de estar mais próximo das pessoas. Em vez de haver um departamento de recursos humanos apartado do resto da empresa, precisa ter um profissional de RH trabalhando dentro do marketing, outro junto à operação… Para entender a realidade das pessoas.
E como o C-Level poderia melhorar a atuação do RH?
Os presidentes precisam dar a caneta para o RH. Têm de colocá-lo em condições equivalentes às de um CFO, ou essa pessoa nunca vai ter a mesma escuta das demais. Não só a escuta, mas a capacidade de interagir e influenciar na tomada de decisões estratégicas.
E como foi, para você, assumir a Plan International depois de tantos anos no RH?
Cheguei com grandes missões, de arrumar os custos, a estrutura, criar processos. E com o desafio de aprender muita coisa. Fui estudar sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, fiz um curso a respeito de violência contra a criança. Foi uma imersão mesmo, para entender a causa. Pessoalmente, também precisei aceitar meus limites. Na Mapfre, havia problemas para resolver diariamente, e eu resolvia. Aqui eu não resolvo. Estamos trabalhando contra a violência infantil, a exploração sexual, mas ela ainda existe e vai continuar existindo. O Brasil é o segundo país do mundo em exploração sexual. Compreendi que estamos impactando a vida de milhares de crianças, mas nunca vai ser suficiente para resolver os problemas de todas.