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Burnout digital: novo fenômeno leva empresas a incentivar a desconexão

Cresce o número de profissionais que relatam exaustão motivada pelo excesso de exposição a dispositivos eletrônicos

Por Bárbara Nór
Atualizado em 25 abr 2023, 14h19 - Publicado em 7 abr 2023, 08h49
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    ove horas e meia de tela. Essa é a média de tempo que o brasileiro passa conectado à internet em um dia regular — mais que a média global, de quase sete horas por dia, de acordo com um relatório publicado em janeiro pela agência We Are Social em parceria com a empresa de monitoramento de mídia online Meltwater. Estamos em segundo lugar no ranking, perdendo apenas para a África do Sul. “Checar o celular é a primeira coisa que muitos de nós fazemos ao acordar, e a última antes de dormir”, diz Edwiges Parra, psicóloga e professora de educação executiva da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo.

    O hábito se intensificou na pandemia, quando os dispositivos se consolidaram como companheiros fiéis. “Não passamos por uma transição”, diz Edwiges. “As coisas evoluíram de maneira muito rápida e tivemos que nos adaptar, mas sem refletir sobre isso e sem olhar para as consequências.”

    O problema, estudos vêm mostrando, é que, quanto mais tempo de conexão, maiores as consequências para o bem-estar físico e mental. Dificuldades de concentração e de automotivação, irritabilidade, insônia e percepção de aumento da sobrecarga mental são só alguns dos sintomas associados ao tempo excessivo de tela. “Sem perceber, não conseguimos mais nos desconectar — estamos sempre recebendo informações e nos mantendo disponíveis”, diz Edwiges. Tanto que alguns especialistas já falam em burnout digital. “Na origem, o burnout é o excesso mal gerenciado”, afirma Luiz Rigonatti, psiquiatra e membro do Sampo, grupo de saúde mental e psiquiatria do trabalho do Instituto de Psiquiatria da USP. “Posso ter um esgotamento motivado por um relacionamento, por exemplo, ou por passar muito tempo numa rede social”, diz Luiz. Mas o resultado seria parecido com o burnout “clássico”, relacionado ao fenômeno ocupacional: exaustão emocional, despersonalização — um distanciamento afetivo das pessoas à volta — e baixa realização profissional. No burnout digital, o quadro é desencadeado pela sobrecarga de conectividade, inclusive no trabalho, a que dedicamos a maior parte do tempo.

    E esse excesso desencadeia outros problemas. “Quanto mais tempo de tela, mais prejudicado fica o sono, maior é a tendência ao sedentarismo e maior é a produção de cortisol, o hormônio do estresse”, diz Sergio Amad, CEO e fundador da Fiter, plataforma de medição da felicidade no ambiente de trabalho, e professor de inteligências múltiplas no Hospital Albert Einstein. A socialização também fica comprometida. “No limite, isso aumenta a sensação de isolamento e pode agravar problemas de saúde mental”, afirma Sergio.

    Desafio corporativo

    Um estudo exclusivo para a VOCÊ RH produzido pela Fiter mostrou que 63% dos 101 entrevistados relacionam o excesso de exposição a dispositivos eletrônicos a sentimentos de estresse e ansiedade. E 77% afirmaram que a maior quantidade de tempo em frente à tela acontece no trabalho.

    Outro levantamento, da Microsoft, revelou que o número de reuniões semanais online aumentou 148% entre 2020 e 2021. Nesse período, metade das pessoas respondia a mensagens no bate-papo em menos de cinco minutos, indicando que os profissionais sentem urgência nos retornos. E a volta ao trabalho presencial parece ter contribuído pouco para mudar o cenário, já que, com cada vez mais pessoas trabalhando de forma híbrida, o meio digital virou padrão em muitas companhias.

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    Em algumas empresas, a discussão do tempo excessivo diante da tela começou durante a pandemia com os relatos da “fadiga do Zoom”, o cansaço provocado por horas de reuniões online seguidas. Foi o caso da empresa de benefícios Alelo, que criou em 2020 a sexta-feira de foco, quando a recomendação é não haver reuniões. “Vínhamos notando uma crescente no tempo de permanência na tela, mas isso piorou bastante nos últimos anos”, diz Soraya Bahde, diretora de pessoas na Alelo. E as reuniões, ela diz, acabaram virando um dos pontos mais desgastantes na rotina dos funcionários. Outras medidas foram bloquear horários na agenda das equipes, como o período do almoço, das 12h30 às 14, criar um manual de boas práticas com recomendações como fazer pausas de 15 minutos entre as reuniões e levantar-se da cadeira a cada hora e concentrar a comunicação de trabalho em apenas uma plataforma de troca de mensagens, para diminuir o desgaste de precisar acompanhar notificações em diversos meios. Já a campanha Curta a Reunião Curta estimulou os encontros mais rápidos e objetivos.

    Tempo de cada um

    Esses temas também são abordados em encontros com as equipes. “Procuramos reforçar a importância da comunicação assíncrona, mostrando que muitas mensagens não precisam de resposta imediata”, diz Soraya. “O tempo de cada um é diferente, e isso deve ser respeitado.” Nas reuniões executivas da Alelo, os líderes reservavam uma parte do tempo para atualizar as informações relevantes para o negócio. Atualmente, esse processo acontece de forma assíncrona: o documento com todas as informações fica disponível para consulta no aplicativo de mensagens, e os profissionais debatem as dúvidas, se necessário, na reunião, que ficou mais curta.

    Para incentivar a desconexão na rotina de trabalho, a empresa cria momentos diários como café da manhã, massagem e happy hour, além de oferecer carrinhos de pipoca, açaí e churros. “Essas ações são um convite para as pessoas se levantarem, fazerem uma pausa e conversarem”, diz Soraya. Todas essas iniciativas têm adesão de mais de 80% dos profissionais. Ao final de cada semana, o RH também checa como anda o estado emocional dos funcionários. Nos últimos 12 meses, a média foi de 85,5% dos trabalhadores com sentimento positivo, 11,5% com sentimento neutro e 3% com sentimento negativo.

    A companhia de softwares Salesforce também aderiu à comunicação assíncrona para reduzir o tempo gasto em encontros online e incentivar o tempo longe das telas. “Em vez de agendarmos uma reunião, colocamos toda a discussão em um canal do aplicativo corporativo, em que cada um pode contribuir com o seu ponto de vista”, diz Priscila Castanho, diretora regional sênior de sucesso do colaborador da Salesforce. Na plataforma, dá para criar um canal para cada projeto e deixar em destaque os arquivos que resumem o que foi discutido na reunião. Para popularizar o modelo, a empresa dedica pelo menos uma semana por trimestre, desde julho de 2021, à realização de discussões de trabalho exclusivamente assíncronas.

    Outra prática que tem se estabelecido nas empresas com iniciativas a favor da desconexão é oferecer períodos de folga adicionais aos funcionários. Na Salesforce, os profissionais podem tirar um tempo ilimitado de dias ao longo do ano — basta combinar com o gestor.

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    Educação para as telas

    Um dos maiores desafios para evitar o burnout digital é o trabalho fora do expediente. Uma pesquisa da consultoria PwC com 32.500 profissionais feita em 2021 mostrou que se desconectar das funções corporativas fora da jornada era uma dificuldade para 37% dos participantes.

    Para muitos, ser um bom funcionário virou sinônimo de responder rápido a todas as mensagens e solicitações de reunião. “A falta de limites leva a um adoecimento e estresse muito grandes”, diz Fátima Macedo, psicóloga e sócia-diretora da consultoria em saúde mental Mental Clean. “Mesmo quando há políticas de horários e de acesso, ainda tem gestor que continua acessando o trabalhador depois do expediente ou no horário de almoço.” Cabe ao RH estabelecer boas práticas.

    Essa discussão, inclusive, já avançou em outros países, como Portugal e França, que determinaram leis de “direito à desconexão”, em que chefes estão proibidos de enviar mensagens às equipes fora do período contratado. Para Cibelle Linero, sócia da área trabalhista do BMA Advogados, embora o Brasil não tenha uma lei semelhante, a legislação trabalhista já garantiria esse direito. A questão é que há brechas de interpretação no controle da jornada, principalmente quando o profissional trabalha por produção ou tarefa. “Independentemente disso, a desconexão precisa virar um valor para a empresa, e as pessoas devem ser estimuladas a ter uma vida fora das telas e do trabalho”, afirma Carla Furtado, especialista em psicologia positiva e saúde mental e diretora do Instituto Feliciência, plataforma de educação corporativa.

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    (VOCÊ RH/VOCÊ RH)

    Nem precisa de muito. Um bom primeiro passo é educar as pessoas para que elas abandonem hábitos que parecem inofensivos, mas não são — como mandar mensagem no fim de semana ou à noite dizendo que “é para não esquecer depois”.

    Outra medida é restringir o acesso ao e-mail e aos sistemas corporativos em determinados horários ou durante as férias, para mostrar que não é esperado que as pessoas se mantenham conectadas e disponíveis o tempo todo. “Não temos uma literacia para redução de consumo de tela”, afirma Carla. Isso envolve orientar a respeito dos riscos do tempo excessivo de tela e suas consequências para a saúde física e mental e conversar sobre quanto deve ser esperado — e estimulado — que as pessoas possam impor os próprios limites.

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    A Basf lançou em setembro de 2021 o Guia de Saúde Emocional. A ideia é conscientizar a respeito de práticas para o bem-estar, incluindo o capítulo Etiqueta Emocional, com orientações sobre os melhores horários para reuniões, a importância do bloqueio na agenda para um tempo longe das telas e o uso adequado dos canais de comunicação.

    O guia é entregue aos novos funcionários na integração e fica também na intranet. Os resultados já apareceram: as equipes vêm criando acordos internos, como momentos para ficar longe das telas. Para funcionar, é essencial contar com o apoio das lideranças.

    Agora o foco é, com o modelo híbrido, redefinir os momentos no presencial. A Basf vem reformando os escritórios para criar locais de descompressão mais atrativos do que os tradicionais espaços com sofás. O projeto-piloto foi a Sala Constelação, recém-inaugurada na sede, em São Bernardo do Campo (SP), que tem um ambiente mais escuro, aromas relaxantes e cadeira de massagem.

    Os 10 sinais de alerta
    (VOCÊ RH/VOCÊ RH)

    O mito do multitarefa

    Quanto mais tempo passamos em frente a telas, mais somos expostos também a textos, imagens e vídeos. Em 2017, especialistas da Domo, empresa americana de serviços na nuvem, já estimavam que 2,5 quinquilhões de bytes de informação eram criados todo dia. Já segundo a empresa de pesquisas Statisa, chegaremos em 2024 a 149 zettabytes (o equivalente a 1 bilhão de terabytes) de informação, ante 74 zettabytes em 2021. Lidar com esse volume de dados é outro desafio para o cérebro. O problema é que, muitas vezes, acessar diferentes fontes de informação ao mesmo tempo passa de necessidade a hábito. “Vemos pessoas em videoconferências respondendo e-mails no celular, vendo notificações no computador, e isso é algo que contribui muito para a exaustão”, diz Guilherme Mancin, líder de RH do banco Citi Brasil.

    Evitar o multitasking é um dos objetivos da empresa desde 2021, motivado por relatos que surgiram em pesquisas de clima. O tema é abordado em treinamentos e comunicados internos. “Os casos de burnout que eu venho acompanhando têm relação direta com o tempo de tela e com o multitasking”, afirma Guilherme. “Muitos acreditam que, por estar com o celular à mão, conseguem cuidar do trabalho e da vida pessoal ao mesmo tempo, e isso agrava a exaustão.” Para Guilherme, o comportamento multitarefa piorou depois da pandemia, quando quase toda a empresa passou a atuar de casa. “Funcionários relataram um cansaço adicional, mesmo com o volume de tarefas permanecendo o mesmo.” O que mudou, ele diz, foi a forma de trabalho, com volume maior de reuniões online — mesmo com a adoção do modelo híbrido, a quantidade de encontros digitais permanece alta.

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    A saída foi criar, em 2021, o programa No Zoom Friday, que são sextas-feiras livres de reuniões. Mas é difícil determinar que ninguém se reúna, então a recomendação é, pelo menos, reunir as pessoas sem o uso de câmeras. “Como líderes, gostamos de dar o exemplo: pedimos para desligarem as câmeras e aproveitarem o momento da call para andar, por exemplo, sem precisar olhar para a tela [caso o profissional esteja no celular]”, diz Guilherme.

    A cada dois meses, o executivo se reúne com todos os gestores do banco e reforça o papel da liderança em manter esses limites na comunicação com as equipes. O desafio, na visão dele, é conseguir que as pessoas também tenham a consciência de não responder mensagens fora do horário e se manter longe das telas, principalmente os mais jovens. “É uma educação pela qual a sociedade inteira vai ter que passar, e é difícil criar essa disciplina.”

    Redução de danos

    Em vez de políticas restritivas, as empresas podem adotar recomendações mais realistas e fáceis de seguir. Por exemplo, sugerir momentos de pausa ativa, como levantar a cada hora para dar uma volta rápida, tomar água ou se alongar. “Vale incentivar hábitos como bloquear notificações e separar períodos para trabalhar de forma focada, sem checar mensagens ou e-mails”, diz Luiz, do Instituto de Psiquiatria da USP. Outras atitudes são fechar as múltiplas abas abertas no computador e deixar outros dispositivos longe da vista. “Só de fazer isso, o nível de estresse já diminui muito, mesmo continuando a exposição a uma tela”, afirma o psiquiatra.

    Está difícil se concentrar
    (VOCÊ RH/VOCÊ RH)

    Também funciona fornecer ferramentas para que os funcionários monitorem quanto tempo passam em frente às telas, porque isso melhora a produtividade, segundo estudo conduzido por pesquisadores das universidades do Estado de San Diego e de Nova York, nos Estados Unidos, e publicado em setembro de 2022. Para chegar ao resultado, eles acompanharam 469 estudantes durante três semanas — metade dos participantes baixou um aplicativo de monitoramento de tela, que permitia também colocar metas de uso para cada atividade. No grupo que usou essa ferramenta, os níveis de fadiga foram menores; e a produtividade, maior.

    Na Cisco, desde 2022 os funcionários conseguem acessar um relatório com o número de horas que passaram em reuniões, incluindo dados como o número de encontros que duraram mais tempo do que o previsto e que aconteceram fora das quiet hours: antes das 9 da manhã e depois das 6 da tarde. A plataforma mostra ainda se o usuário mandou mensagens durante a reunião, algo considerado indesejável. “É uma ferramenta de autogestão e de autoconscientização”, diz Daniela Glezer, líder de recrutamento da Cisco América Latina.

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    A mensagem de autocuidado é também pauta frequente no Check In, evento mensal com o CEO global e toda a empresa, criado em 2020. Para Daniela, a autonomia é uma das questões mais importantes para o bem-estar. O modelo de trabalho híbrido adotado pela empresa, por exemplo, não tem dias obrigatórios para a presença no escritório — cada um vai quantas vezes e quando quiser. “Percebemos que, quando a decisão está nas mãos do funcionário, o estresse e a fadiga são muito mitigados”, diz Daniela. “E deixamos os times livres para decidirem se terão dias sem reunião. Só orientamos que evitem agendar muitos encontros na sequência e que façam pausas entre um e outro.”

    Além disso, a Cisco criou o Day For Me: quatro dias remunerados ao ano em que a empresa inteira para. “É muito legal porque todo mundo se desconecta, e sempre estimulamos que as pessoas separem o dia para fazer algo diferente”, diz Daniela. Para ela, outro fator que ajuda a contornar o estresse de ter que estar conectado o tempo todo é avaliar as pessoas pelas entregas, e não pelo número de horas trabalhadas. Isso exige uma relação de confiança, inclusive diante de imprevistos. “Se acontece algo inesperado na rotina, a pessoa tem o direito de se afastar de suas atividades sem ter prejuízo na remuneração e sem precisar dar explicações”, afirma.

    Mas encontrar o equilíbrio entre a autonomia e a responsabilidade ainda é um desafio para parte das empresas. “Muitas companhias têm o discurso do cuidado, mas a cada vez adotam metas mais agressivas sem mudar as condições de trabalho”, diz Fátima, da Mental Clean. “Elas têm equipes de cinco pessoas para fazerem o trabalho de dez, e esperam que todas consigam gerenciar seu tempo e não trabalhar em excesso.” Além disso, não têm combinados claros a respeito do que é esperado em relação ao trabalho e aos momentos de desconexão, inclusive para os gestores. “Em treinamentos online, por exemplo, é comum ver os líderes trabalhando em outra coisa ao mesmo tempo. Não porque não estão interessados no conteúdo, mas porque têm muito trabalho para fazer”, afirma a psicóloga.

    Esse cenário resume bem a dificuldade que o mundo corporativo tem de lidar com a saúde mental: tratar a consequência não é o caminho para resolver a causa.

    Educação digital
    (VOCÊ RH/VOCÊ RH)
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