Esta reportagem faz parte da edição 71 (dezembro/janeiro) de VOCÊ RH
Em setembro de 2020, o Facebook publicou em sua página global de carreiras uma vaga inédita até então: diretor (ou diretora) de trabalho remoto. Segundo a descrição, esse profissional seria “um pensador estratégico que entende de times virtuais e distribuídos; um excepcional formador de relacionamentos e um agente de mudanças”. A vaga vem em linha com o anúncio de Mark Zuckerberg, que espera que, nos próximos dez anos, pelo menos metade dos funcionários do Facebook passe a trabalhar de forma remota.
Mas não foi a rede social que criou a função. Na verdade, ela já existe desde 2011, quando a GitLab, empresa de softwares americana, contratou um líder de trabalho remoto responsável por articular as necessidades e os ajustes demandados pelas equipes em home office, desde questões tecnológicas até quais são as cidades e regiões com melhor estrutura para o teletrabalho.
Com a pandemia acelerando a adoção das atividades à distância, a tendência é que mais empresas abram posições como essa. Um exemplo é a Quora, rede social de perguntas e respostas. Depois de ver que a maior parte de seus 200 empregados queria ter a chance de trabalhar de casa, a companhia criou uma vaga de líder de trabalho remoto. Sua missão: ajudar a criar um modelo de “trabalho dinâmico”.
Antecipando o futuro
Mesmo que muitas empresas tenham conseguido, de uma forma ou de outra, se adaptar ao home office durante a pandemia, o desafio é pensar a transformação no longo prazo. “Fizemos cerca de
60 conversas com multinacionais no Brasil em vários setores, e praticamente todas estão pensando no modelo híbrido de trabalho”, diz Marcelo Godinho, sócio líder em gestão de pessoas da consultoria EY, se referindo à ideia de operar presencialmente e à distância de forma integrada.
“Trabalho remoto não é mandar todo mundo para casa, é dar aos funcionários a oportunidade de gerenciar a vida e o trabalho de forma melhor”, diz De’Onn Griffin, diretora sênior de pesquisas do Gartner, consultoria global. Para ela, o novo estilo deve ser encarado como uma prática de flexibilização.
E essa é uma demanda dos funcionários. Em uma pesquisa do próprio Gartner, 48% dos profissionais que atuaram em home office na pandemia não querem retornar ao escritório em tempo integral. O novo cargo viria para orquestrar essas mudanças e entender, exatamente, como cada empresa deve criar a própria versão das atividades à distância. “Com uma força de trabalho distribuída, na qual as pessoas se deslocam com facilidade, pode ser importante ter alguém prestando atenção a essas dinâmicas em tempo real”, diz De’Onn.
A transformação vem, inclusive, para permitir que os profissionais morem em cidades menores, desocupando os grandes centros urbanos. Isso é o que defende o professor da Harvard Business School Prithwiraj Choudhury, que estuda o work from anywhere (“trabalho de qualquer lugar”) nos Estados Unidos. Nesse sentido, o líder de trabalho remoto teria um papel fundamental para gerenciar o bem-estar de quem está longe, assim como sua integração com o resto da empresa. “Eles não podem se sentir cidadãos de segunda classe nem ficar de fora de discussões da companhia ou de redes de informação”, diz Prithwiraj. Por isso, os processos organizacionais precisam ser repensados para incluir pessoas de qualquer localidade, não importa a área ou o nível.
Não é a primeira vez que um cargo é criado para ajudar na adoção de uma nova ferramenta ou de uma nova cultura. “Quase sempre, quando há uma nova tecnologia, coloca-se alguém dedicado a ela no começo”, afirma Antonio Salvador, líder de negócios de career na consultoria Mercer Brasil. “Mas a tendência é que as empresas desenhem a experiência do colaborador de forma integrada, não importa se ele é remoto ou não.”
Atuação polivalente
O novo cargo deve envolver uma série de competências. “Para entender as possibilidades da organização, é preciso combinar tanto o lado operacional quanto o cultural”, diz De’Onn, do Gartner. De um lado, ela diz, esse profissional precisa entender qual é a tecnologia disponível e ajudar a empresa a buscá-la e implementá-la. De outro, deve engajar as equipes nessa mudança. “Precisamos garantir que mesmo a mais simples reunião seja inclusiva e que todos se sintam ouvidos”, orienta a consultora.
Marcelo Godinho, da EY, explica que o líder de trabalho remoto deverá orquestrar ao menos quatro áreas funcionais na empresa. Afinal, a transformação para o modelo híbrido envolve setores distintos, como RH, facilities, jurídico e TI (veja o quadro Missão multidisciplinar, na página ao lado). Para ele, não será crucial criar uma nova diretoria dedicada à área; é possível absorver a demanda dentro do departamento de gestão de pessoas. “As empresas estão num momento de segurar custos, por isso talvez seja mais razoável pensar em ter um profissional do RH dedicado a essas questões.”
Ainda assim, essa pessoa deve ser capaz de manter o ponto de contato entre todas as áreas e liderá-las no movimento. Outra proposta, em vez de criar um cargo, é criar uma equipe multidisciplinar, como sugere Amelia Caetano, especialista em gestão remota do Instituto de Trabalho Portátil. “Seria interessante um modelo de squad dedicado, com um líder bom em gestão de projetos, que possa olhar a organização de forma sistêmica”, diz.
Qualquer que seja o formato escolhido, ter proximidade com tecnologias será essencial para a função. “O digital vai perpassar todos os processos da companhia”, diz Antonio Salvador, da Mercer. Mas a forma como isso será feito deve ser única para cada negócio e cultura. “Desenvolver esse conhecimento interno é importante para gerenciar e encontrar o que mais se adequa ao negócio. Isso não deve ficar fora da empresa, de forma terceirizada”, afirma o executivo.
Uma das principais funções desse profissional, para Prithwiraj, da Harvard, será organizar e formalizar as regras intrínsecas e o conhecimento existente na companhia. Isso é especialmente importante porque, com as pessoas espalhadas em diversas localidades, não será possível que um novo empregado pergunte ao colega no cafezinho como as coisas funcionam, nem que aprenda pela observação. “A primeira coisa que o líder de trabalho remoto deve fazer, além da política de home office, é reunir e documentar esse conhecimento”, diz o professor. Esse manual deve ser de fácil acesso e não pode depender de interações ao vivo para ser assimilado por quem está chegando.
Escuta ativa
Um dos principais desafios, seja no ambiente remoto, seja no presencial, é um velho conhecido: alinhar as expectativas dos profissionais com as da empresa. Uma pesquisa da EY sobre o retorno ao trabalho depois da pandemia com 3.682 funcionários mostra uma disparidade entre a percepção das pessoas e a da liderança: 90% das empresas entendem que estão priorizando a geração de valor para os funcionários nas tomadas de decisão — percepção compartilhada por apenas 69% dos empregados. “É fundamental que esse líder execute um processo de escuta ativa de todos para endereçar as necessidades, conjugando as demais áreas”, diz Marcelo, da EY. Numa cultura como a brasileira, que exige interação e encontros, o raciocínio faz todo o sentido. “Talvez seja o caso de pensar no escritório como o lugar do coletivo, onde as pessoas podem se reunir”, diz o consultor.
Importante lembrar: os gestores também precisam de cuidados e de acolhimento. “As lideranças estão sofrendo mais porque é difícil fazer a transição da gestão presencial para a virtual”, diz Antonio, da Mercer. “A maior parte do trabalho do líder é conversar, coordenar reuniões, fazer apresentações, e o virtual requer um preparo diferente.” Aí é que entra a necessidade de engajar os chefes na transformação do modelo de trabalho. Para Prithwiraj, se CEO e diretores continuarem indo ao escritório todos os dias, dificilmente a mudança será efetiva. “Somente se a alta liderança começar a trabalhar de forma remota é que você conseguirá que toda a organização se motive para o sucesso do modelo.” Na pandemia isso é até fácil. O desafio surgirá de verdade depois que o isolamento social se tornar desnecessário.
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