Novo livro afirma que a busca pela felicidade nos torna infelizes
Nação Dopamina revela por que a busca incessante por experiências prazerosas e a fuga do sofrimento nos distanciam da satisfação
or que, numa época sem precedentes de prosperidade, liberdade, progresso tecnológico e avanço médico, parecemos estar mais infelizes e com mais dores do que nunca?”, questiona Anna Lembke, professora de Psiquiatria e Medicina da Adição na Escola de Medicina da Universidade Stanford em seu novo livro, Nação Dopamina, lançado no Brasil dia 4 de abril. “Talvez o motivo de estarmos todos tão infelizes seja porque estamos dando duro para evitar ser infelizes.” Para a autora, temos buscado fugir do sofrimento com comportamentos que estimulam no organismo a liberação de dopamina, hormônio ligado ao prazer, como passar horas nas mídias sociais ou até trabalhar demais, em busca de reconhecimento, dinheiro, poder. No trecho a seguir, ela conta como vencer esse círculo vicioso.
Trecho do livro
Todos nós fugimos do sofrimento. Alguns tomam comprimidos. Alguns se estendem no sofá, maratonando Netflix. Outros leem romances baratos. Fazemos praticamente qualquer coisa para nos distrair de nós mesmos. No entanto, parece que toda essa tentativa de nos isolarmos do sofrimento apenas torna nosso sofrimento pior.
Segundo o Relatório de Felicidade Mundial, que classifica 156 países segundo a extensão de felicidade que seus cidadãos consideram ter, os residentes nos Estados Unidos declararam estar menos felizes em 2018 do que em 2008. Outros países com nível semelhante de riqueza, assistência social e expectativa de vida viram um declínio semelhante em pontuações autodeclaradas de felicidade, incluindo Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Japão, Nova Zelândia e Itália.
Os pesquisadores entrevistaram quase 150 mil pessoas em 26 países para determinar a prevalência de transtorno de ansiedade generalizado, definida como preocupação excessiva e descontrolada, afetando a vida delas negativamente. Eles descobriram que os países mais ricos tinham taxas de ansiedade mais altas do que os países pobres: “O transtorno predomina mais significativamente e com maior comprometimento nos países de alta renda do que nos países de baixa ou média renda”.
Entre 1990 e 2017, o número de novos casos de depressão cresceu 50% mundialmente. Os maiores aumentos de novos casos foram vistos em regiões com o indicador sociodemográfico (renda) mais alto, em especial a América do Norte. A dor física também está aumentando. No decorrer da minha carreira, tenho atendido mais pacientes, inclusive jovens que, muito embora sejam saudáveis, apresentam dor em todo o corpo, ainda que não tenha sido identificada nenhuma doença, nem lesão de tecido. Os números e tipos de síndrome de dor física inexplicável cresceram (…).
Os pesquisadores fizeram a seguinte pergunta a pessoas em 30 países ao redor do mundo: “Durante as últimas quatro semanas, com que frequência você teve dores ou desconfortos físicos? (…) Descobriram que os estadunidenses relataram mais dores do que qualquer outro país: 34% disseram que sentiam dor “frequentemente” ou “muito frequentemente”, em comparação a 19% das pessoas que vivem na China, 18% das que vivem no Japão, 13% das que vivem na Suíça, e 11% das que vivem na África do Sul.
A pergunta é: por que, numa época sem precedentes de prosperidade, liberdade, progresso tecnológico e avanço médico, parecemos estar mais infelizes e com mais dores do que nunca? Talvez o motivo de estarmos todos tão infelizes seja porque estamos dando duro para evitar ser infelizes. (…)
A balança é apenas uma metáfora
Na vida real, o prazer e o sofrimento são mais complexos do que o funcionamento de uma balança. (…) O que é agradável para uma pessoa pode não ser para outra. Cada uma tem sua “droga de escolha”. (…)
Nem todos começam com uma balança nivelada. Quem tem depressão, ansiedade e dor crônica começa com a balança inclinada para o lado do sofrimento, o que pode explicar por que as pessoas com transtornos psiquiátricos são mais vulneráveis à dependência. (…)
O maquinário neurológico para o processamento de prazer e sofrimento (superantigo do ponto de vista filogenético) permaneceu intacto ao longo da evolução e através das espécies. Ele está perfeitamente adaptado a um mundo de escassez. Sem prazer, não comeríamos, beberíamos nem nos reproduziríamos. Sem dor, não nos protegeríamos de ferimentos e morte. Ao elevarmos nosso ponto de ajuste neural com repetidos prazeres, tornamo-nos eternos batalhadores, nunca satisfeitos com o que temos, sempre buscando mais.
Mas aqui está o problema. Os seres humanos, buscadores por excelência, reagiram bem demais ao desafio da busca do prazer e da evasiva da dor. O resultado é que transformamos o mundo de um lugar de escassez em um lugar de abundância excessiva.
Nossos cérebros não evoluíram para esse mundo de fartura. Como disse o Dr. Tom Finucane, que estuda diabetes no contexto da alimentação sedentária crônica, “somos cactos em uma floresta tropical”. E, como cactos adaptados a um clima árido, estamos nos afogando em dopamina.
O efeito bruto é que agora precisamos de mais recompensa para sentir prazer e suportamos menos danos para sentir dor. (…) O que pede o questionamento: como sobreviver e nos desenvolver nesse novo ecossistema? Como educar as crianças? Que novas maneiras de pensar e agir serão necessárias para nós, cidadãos do século 21?
Dependente do trabalho
Ser workaholic é um comportamento estimulado pela sociedade. Talvez em nenhum outro lugar isso seja mais verdadeiro do que aqui, no Vale do Silício, onde a norma é de 100 horas de trabalho por semana, e disponibilidade 24 horas, sete dias por semana.
Em 2019, após três anos de viagens mensais a trabalho, decidi limitá-las, num esforço para colocar o trabalho e a vida pessoal de volta a um equilíbrio. No começo, falava abertamente sobre o motivo: queria mais tempo com a minha família. As pessoas pareceram tanto contrariadas quanto ofendidas que eu declinasse seus convites por um motivo tão prosaico quanto “tempo com a família”. Acabei recorrendo a dizer que já tinha outro compromisso, justificativa que encontrou menos resistência. Ao que parecia, trabalhar em outro lugar era mais aceitável.
Incentivos invisíveis são agora entremeados no tecido do trabalho corporativo, desde a perspectiva de bônus e a opção de ações até a promessa de promoção. Mesmo em áreas como medicina, profissionais de saúde veem mais pacientes, prescrevem mais receitas e realizam mais procedimentos por serem incentivados a fazer isso. Recebo um relatório mensal sobre a minha produtividade, com a avaliação de quanto faturei em prol da minha instituição.
Por outro lado, os trabalhos braçais estão cada vez mais mecanizados e desligados do significado do próprio trabalho. Trabalhar a serviço de beneficiários distantes traz uma limitação de autonomia, um modesto ganho financeiro e pouca sensação de um objetivo comum. O trabalho segmentado de linha de montagem fragmenta a sensação de realização e minimiza o contato com o consumidor do produto final, ambos básicos para uma motivação interna. O resultado é uma mentalidade “work hard, play hard”, na qual o hiperconsumo compulsivo torna-se a recompensa no final de um dia de trabalho maçante.
Assim, não é de se surpreender que aqueles que não completaram o ensino médio e têm empregos que pagam mal estejam trabalhando menos do que nunca, enquanto os assalariados com alto nível educacional estejam trabalhando mais.
Em 2002, os 20% dos trabalhadores mais bem pagos tinham o dobro de probabilidade de trabalhar até tarde do que os 20% mais mal pagos, e essa tendência continua. Os economistas especulam que a mudança se deve às gratificações mais altas para aqueles que estão no topo da cadeia econômica produtiva.
Às vezes, quando estou engatada num trabalho, acho difícil parar. O “fluxo” de concentração profunda é uma droga em si mesmo, liberando dopamina e criando sua própria euforia. Esse tipo de foco obsessivo, embora altamente recompensado nas nações modernas ricas, pode ser uma armadilha quando nos impede de manter conexões íntimas com amigos e família. (…)
Lições de equilíbrio
Todos nós desejamos um respiro no mundo, uma pausa dos padrões impossíveis que com frequência estabelecemos para nós mesmos e para outros. É natural que procuremos um alívio de nossas próprias ruminações incansáveis: Por que fiz isso? Por que não posso fazer isto? Olha o que me fizeram. Como pude fazer isso para eles?
Então, somos atraídos para qualquer uma das formas agradáveis de fuga, que agora estão disponíveis para nós: coquetéis da moda, mídia social, maratona de reality shows, batatas fritas… A lista realmente não acaba. Drogas e comportamentos aditivos oferecem esse respiro, mas, com o tempo, contribuem para nossos problemas.
E se, em vez de tentar escapar do mundo, corrermos em direção a ele?
Incentivo você a procurar uma maneira de mergulhar a fundo na vida que lhe foi dada; a parar de fugir do que quer que seja e, em vez disso, encarar seja lá o que for. (…)
Os ganhos de encontrar e manter equilíbrio não são imediatos nem permanentes. Exigem paciência e manutenção. Temos que estar dispostos a seguir em frente, apesar da incerteza do que nos espera. (…) Práticas saudáveis acontecem dia a dia.
Este texto faz parte da edição 79 (abril/maio) de VOCÊ RH.
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