Legado para o futuro: livro discute como se tornar um bom ancestral
O historiador e filósofo Roman Krznaric debate por que precisamos urgentemente desenvolver um pensamento de longo prazo para criar sociedades sustentáveis
O pensamento de curto prazo cria um problema grave: as sociedades – e as pessoas – param de refletir sobre a maneira como as ações do presente se desdobrarão no futuro e não se importam com as consequências negativas que atos impensados do agora terão sobre as gerações que estão por vir. Mas como mudar esse modus operandi e aumentar a consciência sobre a relação entre o hoje e o amanhã?
Foi para responder a essa pergunta que Roman Krznaric escreveu o livro Como ser um bom ancestral. Historiador, filósofo, cofundador da The School of Life em Londres e autor do aclamado Como encontrar o trabalho da sua vida (37,90 reais, Objetiva), Roman traz em seu novo livro seis passos para que criemos um futuro sustentável. E tudo começa com o desenvolvimento do pensamento de longo prazo. No trecho a seguir, o autor introduz o tema. E nesta entrevista para VOCÊ RH, ele explica melhor sua teoria.
TRECHO DO LIVRO
- Como podemos ser bons ancestrais?
Somos os herdeiros das dádivas do passado. Considere o imenso legado deixado por nossos ancestrais: aqueles que semearam as primeiras sementes na Mesopotâmia 10 mil anos atrás, que limparam a terra, construíram as vias navegáveis e fundaram as cidades onde hoje vivemos, que fizeram as descobertas científicas, venceram as lutas políticas e criaram as magníficas obras de arte que nos foram transmitidas. Raramente paramos para pensar como eles transformaram a nossa vida. A maioria deles foi esquecida pela história, mas entre aqueles que são lembrados está o médico e pesquisador Jonas Salk.
Em 1955, após quase uma década de meticulosos experimentos, Salk e sua equipe desenvolveram a primeira vacina bem-sucedida e segura para a poliomielite. Foi uma conquista extraordinária; na época, a pólio paralisava ou matava meio milhão de pessoas por ano no mundo todo. Salk foi imediatamente aclamado como um milagreiro. Mas ele não estava interessado em fama e fortuna — nunca procurou patentear a vacina. Sua ambição era “ter alguma utilidade para a humanidade” e deixar um legado positivo para futuras gerações. Não há dúvida de que conseguiu.
Anos depois, Salk expressou sua filosofia de vida numa única pergunta: “Estamos sendo bons ancestrais?”. Ele acreditava que, assim como herdamos tantas riquezas do passado, devemos também transmiti-las aos nossos descendentes. Estava convencido de que para isso — e para enfrentar crises globais como a destruição da natureza pela humanidade e a ameaça da guerra nuclear — precisávamos de uma mudança radical em nosso panorama temporal, de uma perspectiva cuja direção fosse mais concentrada no pensamento de longo prazo e nas consequências de nossas ações para além de nossa própria vida. Em vez de pensar numa escala de segundos, dias e meses, devíamos ampliar nossos horizontes temporais de modo a abranger décadas, séculos e milênios. Só então seríamos capazes de respeitar e honrar verdadeiramente as gerações vindouras.
A pergunta de Salk pode vir a ser nossa maior contribuição para a história. Formulada de uma maneira mais ativa — “Como podemos ser bons ancestrais? ” —, eu a considero a questão mais importante de nosso tempo, e uma questão que oferece esperança para a evolução da humanidade. O desafio de respondê-la, além de ter inspirado este livro, também frequenta suas páginas. Ele nos convoca a considerar como seremos julgados por futuras gerações, e se deixaremos um legado que as beneficia ou as prejudica. A velha aspiração bíblica de ser um Bom Samaritano já não basta. É hora de uma atualização para o século XXI: ser um Bom Ancestral.
O futuro foi colonizado
Tornar-se um bom ancestral é uma tarefa formidável. Nossas chances de fazê-lo serão determinadas pelo resultado de uma luta pela mente humana que acontece neste momento, e em escala global, entre as forças opostas do pensamento de curto e de longo prazo.
Neste momento da história, a força dominante é clara: vivemos numa era de predomínio patológico do pensamento de curto prazo. Os políticos mal conseguem enxergar além da próxima eleição ou da última pesquisa de opinião ou de um tuíte. As empresas são escravas do próximo relatório trimestral e da constante exigência de aumentar o retorno para os acionistas. Os mercados chegam a seu ponto máximo e depois quebram em bolhas especulativas conduzidas por algoritmos que têm a rapidez de milissegundos. Em conferências internacionais, concentradas em seus interesses de curto prazo, nações se reúnem em mesas de discussão enquanto o planeta pega fogo e espécies desaparecem. Nossa cultura de gratificação instantânea nos leva a nos exceder no consumo de fast food, no envio de mensagens de texto rápidas e no uso do botão “Compre agora”. “A grande ironia de nosso tempo”, escreve a antropóloga Mary Catherine Bateson, “é que ao mesmo tempo que estamos tendo vidas mais longas, estamos tendo pensamentos mais curtos.” Esta é a era da tirania do agora.
O pensamento de curto prazo está longe de ser um fenômeno novo. A história está repleta de exemplos — da temerária destruição das florestas virgens japonesas no século XVII até a especulação desenfreada que levou ao crash de Wall Street em 1929. Não é sempre um coisa ruim: assim como um pai pode precisar de repente correr com uma criança ferida para o hospital, um governo precisa responder com rapidez e agilidade a crises como um terremoto ou uma epidemia. Mas dê uma olhada nas notícias diárias e você vai encontrar múltiplos exemplos da tendência nociva ao pensamento de curto prazo. Governos preferindo a solução rápida de encarcerar mais criminosos a lidar com as causas sociais e econômicas mais profundas do crime. Ou subsidiando a indústria do carvão em vez de apoiar a transição para a energia renovável. Ou socorrendo nossos bancos insolventes depois de uma quebra em vez de reestruturar o sistema financeiro. Ou deixando de investir em assistência médica preventiva, no combate à pobreza infantil e em políticas habitacionais. Ou… a lista se prolonga indefinidamente.
Os perigos do pensamento de curto prazo vão muito além dessas áreas de política pública e nos trouxeram ao ponto de crise em que estamos agora. Isso se deve, em primeiro lugar, à perspectiva crescente do chamado “risco existencial”, que se refere normalmente a eventos de baixa probabilidade mas de grande impacto que poderiam ser causados por novas tecnologias. No topo da lista estão as ameaças decorrentes de sistemas de inteligência artificial, como as armas autônomas letais que não podem ser controladas por seus fabricantes humanos. Outras possibilidades incluem pandemias geneticamente engendradas ou uma guerra nuclear provocada por um Estado desonesto numa era de crescente instabilidade política. Especialista em riscos existenciais, o filósofo Nick Bostrom está particularmente preocupado com o impacto futuro da nanotecnologia molecular e teme que terroristas possam se apropriar de nanorrobôs autorreplicadores de bactérias que saem de controle e envenenam a atmosfera. Diante dessas ameaças, muitos especialistas em risco existencial acreditam que a probabilidade de a humanidade chegar ao fim do século sem perder vidas em escala catastrófica é de uma em seis.
Igualmente séria é a possibilidade de um colapso civilizacional devido à nossa persistente destruição dos sistemas ecológicos de que nosso bem-estar e a própria vida dependem. À medida que continuamos a extrair combustíveis fósseis impensadamente, a envenenar nossos oceanos e a destruir espécies num ritmo que equivale ao de uma “sexta extinção”, a perspectiva de impactos devastadores torna-se ainda mais próxima. Em nossa era hiperconectada, essa ameaça existe agora em escala mundial; não há um planeta B para onde correr. Segundo o historiador ambiental Jared Diamond, essa destruição ecológica esteve na raiz do colapso civilizacional ao longo de toda a história humana. Sua principal causa subjacente, ele afirma, é uma overdose de “tomadas de decisão de curto prazo” associada a uma ausência de “pensamento corajoso de longo prazo”. Fomos avisados.
Esses desafios nos põem diante do inescapável paradoxo de que a necessidade de pensar a longo prazo seja uma questão da máxima urgência, exigindo ação imediata no presente. “Agora mesmo estamos diante de um desastre de escala global produzido pelo homem, nossa maior ameaça em milhares de anos: as mudanças climáticas”, disse David Attenborough a líderes mundiais na Conferência da ONU sobre o Clima em 2018. “Se não tomarmos uma atitude, o colapso de nossa civilização e a extinção de grande parte do mundo natural estão no horizonte.” Segundo o naturalista, “O que acontece agora, e nos próximos anos, afetará profundamente os próximos milhares de anos”.
Declarações como essas deveriam nos deixar em alerta vermelho. Mas elas muitas vezes falham em expressar quem exatamente suportará as consequências de nossa miopia temporal. A resposta não é apenas nossos próprios filhos e netos, mas os bilhões de seres humanos que nascerão nos séculos vindouros, e cujo número é muitíssimo maior do que o de todos que vivem hoje.
Chegou o momento, especialmente para aqueles que vivem em nações ricas, de reconhecer uma verdade perturbadora: que colonizamos o futuro. Tratamos o futuro como um posto avançado colonial distante, desprovido de pessoas, onde podemos despejar livremente degradação ecológica, risco tecnológico e lixo nuclear, e que podemos saquear à vontade. Quando a Grã-Bretanha colonizou a Austrália nos séculos XVIII e XIX, ela se valeu de uma doutrina legal hoje conhecida como terra nullius — terra de ninguém — para justificar sua conquista e tratar a população nativa como se ela não existisse ou tivesse quaisquer direitos sobre a terra. Hoje nossa atitude social é de tempus nullius: o futuro é visto como “tempo de ninguém”, um território não reivindicado que é similarmente desprovido de habitantes e que está à disposição, como os domínios distantes de um império. Assim como os nativos australianos ainda lutam contra o legado de terra nullius, há também uma luta a ser travada contra a doutrina de tempus nullius.
A tragédia é que as gerações ainda não nascidas nada podem fazer com relação a essa pilhagem colonialista de seu futuro. Elas não podem se jogar na frente do cavalo do rei como uma sufragista, bloquear uma ponte no Alabama como um defensor dos direitos civis ou empreender uma Marcha do Sal para desafiar seus opressores coloniais como fez Mahatma Gandhi. Não possuem nenhum direito político ou representação, não têm nenhuma influência nas urnas ou no mercado. A grande maioria silenciosa das futuras gerações fica impotente e é apagada de nossa mente.
SERVIÇO
Como ser um bom ancestral
Roman Krznaric
Zahar
328 páginas
79,90 reais