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Trainee para negros: por que essa prática causa tanta polêmica?

Programa exclusivo para negros anunciado pelo Magazine Luiza é alvo de críticas e traz à tona o debate sobre inclusão

Por Hanna Oliveira
Atualizado em 23 out 2024, 10h21 - Publicado em 22 set 2020, 13h54
 (Unsplash / Eye for Ebony/Divulgação/Divulgação/Divulgação)
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Foi com incômodo que alguns grupos receberam a notícia, na última sexta-feira (18/9), de que o Magazine Luiza lançou um programa de trainee e vagas de emprego exclusivo para profissionais negros, focado em desenvolvimento para liderança. Desde então, o projeto vem sendo alvo de críticas nas redes sociais por pessoas que acreditam ser essa uma iniciativa “racista” e ilegal.
Um dia após o anúncio do programa, a juíza do Trabalho Ana Luiza Fischer Teixeira de Souza Mendonça, se manifestou em uma rede social, alegando, em seu entendimento, ser o programa inconstitucional. A juíza apagou a publicação horas depois. Os deputados federais Carlos Jordy (PSL-SP) e Daniel Silveira (PSL-RJ) também se pronunciaram contrários a ação.
Mesmo sob ataques, Luiza Helena Trajano, presidente do conselho de administração da Magazine Luiza reforçou, em entrevista para o jornal Folha de São Paulo, o compromisso da companhia com o programa da trainee exclusivo para negros e que “não irá desistir da iniciativa”.
E, em um artigo para o site Brazil Journal, Frederico Trajano, presidente da companhia, disse que embora a Magalu tenha 40.000 funcionário e metade deles seja negro ou pardo, apenas 16% da liderança é de afrodescendentes. “Para uma empresa que prega o valor das pessoas e da diversidade, seria uma hipocrisia fechar os olhos e assumir que não há alguma coisa errada”, escreveu Frederico. Para tentar mudar esse quadro, segundo o executivo, a companhia decidiu que criar um programa de trainee exclusivo para negros era o caminho – já que, de acordo com ele, ter um projeto sem esse enfoque não atraía esse público específico. “De 250 trainees, apenas 10 eram negros”, escreveu Frederico.
Mas por que iniciativas como essa, que também foram tomadas por outras companhias, como Bayer, P&G, Ambev e Accenture, causam tanto incômodo? Para compreender os motivos, é preciso entender o que há por trás do racismo brasileiro.
Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida”*
Em versos de suas poesias, Carolina Maria de Jesus, autora de Casa de Alvenaria (Leebooks Editora), descreveu sua vida de mulher negra e periférica na São Paulo da metade do século 20. A escritora chegou a dizer: “digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida”. Apesar do talento, Carolina só teve chance de ser uma escritora reconhecida já no fim de sua vida e sua obra faz a denúncia do racismo como um dos principais motivos. Mais de 50 anos depois, números não faltam para se constatar a situação de vulnerabilidade social a que ainda é colocada a população negra.
O Brasil hoje é um país predominantemente negro – em levantamento realizado pelo IBGE em 2018, cerca de 56% da população se identifica como preta ou parda. Apesar de compor a maioria, negros enfrentam dificuldades de se inserir no mercado de trabalho como mostra um outro levantamento do mesmo ano, que constatou que quase 70% dos cargos de liderança no país são ocupados por brancos e 66,1% da força de trabalho preta ou parda é subutilizada no Brasil.
Para Raphael Vicente, coordenador geral da Universidade Zumbi dos Palmares, é preciso compreender esses dados não se dão apenas por questões econômicas e educacionais, o fio do racismo também conduz essa decisão. “Quando se pega a foto do mercado de trabalho das maiores empresas hoje e você compara com 25 anos atrás, veremos que a foto é a mesma, mesmo que nesses últimos 25 anos a presença de negros no ensino superior tenha quadruplicado”, explica.  “A questão é: o problema do mercado de trabalho e da ausência de negros é racial, econômico ou educacional? Se for econômico, basta distribuição de renda; se for educacional, basta elevar os anos de estudo; se for um problema racial, aí questão é diferente. Precisamos de uma intervenção”.
Por isso, especialistas em diversidade defendem ações afirmativas – as famosas (e polêmicas) cotas. “Cota é um processo transitório que tem começo meio e fim para equiparar uma desigualdade. Na hora que equiparar, tiramos”, explica Cristina Kerr, CEO e fundadora da consultoria de diversidade CKZ.

O olhar de juristas sobre a questão
Do ponto de vista jurídico, esse tipo de programa, além de constitucional é fomentado por entidades como o Ministério Público do Trabalho (MPT), que divulgou, no último fim de semana, nota pública de esclarecimento sobre o tema junto com uma nota técnica de sua autoria sobre o assunto.
Valdirene Silva de Assis, procuradora do órgão diz que, na realidade, empresas que adotaram medidas de inclusão estão seguindo recomendações do próprio Ministério Público do Trabalho, que vem atuando para garantir a inserção de jovens negros e negras no mercado.
“Reafirmamos nosso compromisso pela necessidade do respeito ao princípio do estado democrático de direito, da igualdade, da justiça social, do combate ao racismo, mediante a ações afirmativas”, explica a procuradora, contando que essas ações também respeitam a Constituição Federal e tratados internacionais aos quais o Brasil é signatário. Valdirene diz que foi com surpresa que o MPT recebeu manifestações contrárias partindo de juristas, pois ações afirmativas, não seriam “novidade” para operadores do direito no país.
Patricia Alves, advogada e coordenadora da área trabalhista e integrante do Comitê de Diversidade do escritório Souto Correa Advogados, alega essa já ter sido uma matéria discutida pelo Supremo Tribunal Federal. “Já tivemos essa discussão quando se criaram as cotas raciais nas universidades e concursos públicos. O STF analisou e chegou à conclusão que não fere o princípio da igualdade. Pelo contrário. Esse tipo de atuação prestigia esse princípio e está colaborando para que haja uma diminuição da desigualdade social para que a gente possa chegar na igualdade tão desejada da Constituição Federal”, diz a advogada.
“Quero um lugar, onde o preto é feliz”
Em vida, Carolina de Jesus não pôde entrar no mercado de trabalho formal – a escritora viveu grande parte de seus dias como catadora de papel, mudando de vida apenas na década de 60, após a publicação de seus livros. A história dela exemplifica a condição do negro no mercado brasileiro. Segundo Raphael, da Universidade Zumbi dos Palmares, foi a partir da década de 50 que os trabalhadores negros passaram a ser reabsorvidos pelo mercado nacional. Ele explica que isso ocorreu por conta dos processos de imigração e da absorção de imigrantes brancos no país.  “O trabalhador negro só vai começar a ser absorvido por esse mercado de trabalho na década de 50. Quando olhamos os números de 1930 é espantoso: 92% dos cargos da indústria paulista eram ocupados de imigrantes não negros”, afirma, explicando que esses índices têm reflexos até os dias de hoje.
Cristina, da CKZ, complementa: “Historicamente a população negra foi escravizada, depois não tinha acesso à saúde, à moradia, a um trabalho decente e tudo isso foi causado pela população branca. Quem é que hoje está nas empresas? Brancos. Na verdade, isso é tido como uma reparação histórica por tudo que a lei promovia”.
Para os negros, mesmo com ações afirmativas, ainda existem muitos obstáculos – que não mudam mesmo com anos de evolução do mercado. “A gente ouve muitas empresas falarem ‘vou trazer o profissional negro e vou ter que baixar a régua’, diz Cristina. E esse pensamento faz eco com décadas atrás. De acordo com Raphael, que cita como fonte o livro Brancos e Negros em São Paulo (Roger Bastide e Florestan Fernandes, Global Editora), na década de 40 os negros recebiam uma marcação em seus currículos que indicava que só poderiam ter trabalhos braçais. “O argumento de quem não empregava negros era: ‘eu não sou racista, é que o negro não tem mesmo aptidão’ ou ‘não sou racista, é que a clientela não gosta de tratar com negro’”, diz Raphael.
 “Dêixô êstes versos ao meu país”
Para superarmos essa questão, é importante compreender o tipo de racismo que se dá no Brasil: velado, mas que se manifesta energicamente quando políticas de inclusão, como a do Magazine Luiza, são instauradas. “O racismo à brasileira não é objetivo, ele não é frontal nas suas comunicações, mas ele é objetivo e frontal no resultado a que ele se propõe”, diz Raphael. “O racismo anda junto a vulnerabilidades econômicas, sociais e políticas.”
As empresas têm um papel importante nessa reparação histórica, já que o emprego é essencial para a mobilidade social e o aumento da representatividade. Mas, além de trabalhar a diversidade, as companhias precisam desenvolver a inclusão e a garantia de permanência. “As empresas têm que trabalhar viés inconsciente, trabalhar cultura inclusiva. Eu tenho amigas que fazem parte do grupo de inclusão racial que me contam que vai todo mundo almoçar e ninguém as chamam”, diz Cristina.
A especialista alerta que falar de diversidade está “na moda”, mas não adianta contratar pessoas se os grupos minoritários não forem realmente acolhidos.  “Elas têm voz numa reunião? Os projetos mais importantes vão para elas também ou continuamos priorizando alguns grupos dentro das empresas? Isso é a inclusão: eu convido para o baile, mas tenho que fazer a pessoa dançar”, explica Cristina, parafraseando uma famosa frase sobre inclusão dita por Vernā Myers, vice-presidente de inclusão da Netflix
No fim do dia, o enfoque tem que ser em igualar as oportunidades, como explica Raphael. “As oportunidades precisam ser iguais e ninguém está pedindo mais nada do que isso: dê oportunidade para todos.”
*Os intertítulos dessa matéria são trechos da obra da escritora negra Carolina Maria de Jesus, mais conhecida pelo título “Quarto de despejo”. Escreveu sobre seu cotidiano e subjetividades, sem poder deixar de fora o racismo e a vida periférica na São Paulo da metade do século 20.

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