A inteligência artificial é o novo coach?
A tecnologia já ajuda líderes a dar feedbacks e a lidar com dilemas profissionais. Mas os especialistas alertam: o bot pode virar um atalho perigoso.

Mentora avalia com cuidado uma questão levantada por Wagner Cassimiro, seu mentorado. Ele tem problemas com Luiz, um de seus funcionários, que insiste em fazer anotações em um papel em vez de digitalizá-las e compartilhar com a equipe. “A gente perde na colaboração de evoluir esse trabalho. O quanto eu estou invadindo a privacidade dele, o quanto eu realmente deveria voltar a ter essa conversa com ele?”, pergunta Wagner.
A interlocutora dessa conversa entende Luiz, o outro: ele usa um “método tradicional que o ajuda a se concentrar melhor”. Mas também compreende a demanda de Wagner e a necessidade de compartilhar informações com a equipe toda. “Vamos pensar em como encontrar
o meio-termo. Você não está invadindo a privacidade dele ao sugerir maneiras de melhorar a produtividade e a colaboração. É uma questão de alinhar expectativas e encontrar uma solução que beneficie a todos”, diz.
A primeira sugestão de Mentora soa pouco surpreendente. “Você já pensou em propor ao Luiz continuar a fazer suas anotações no papel, mas depois digitalizá-las ou criar um resumo para compartilhar com a equipe? O que você acha?”. O mentorado, obviamente, já havia feito esse pedido. Ele, então, solicita que ela considere as informações que já tem sobre o comportamento e o perfil de Luiz, para ajudá-lo a ter uma conversa mais produtiva com seu funcionário.
Mentora tem. Em seu banco de dados estão armazenados testes de personalidade e competências dos funcionários (e, sim, com consentimento). E é desse pote de ouro analítico que ela tira ferramentas para melhorar relações dentro da empresa.
“Luiz é receptivo a novas experiências e valoriza organização e precisão nas suas tarefas. Ele prefere fazer anotações no papel porque isso o ajuda a focar. Essa preferência indica que ele valoriza métodos que funcionam bem para ele. Uma estratégia para abordar essa questão pode ser focar nos benefícios que a mudança traria para ele e para o time, como maior eficiência e colaboração”, opina Mentora.
Wagner é mentorado e um dos criadores da Mentora, uma inteligência artificial focada em coaching para lideranças. Desde o fim de 2022, quando os modelos de linguagem de grande porte (LLMs), como o ChatGPT 3.5, se popularizaram, empresas de diferentes setores passaram a criar suas próprias versões da tecnologia. A lógica é simples: adaptar o modelo bruto às necessidades do negócio, seja ele coaching, atendimento ao cliente ou suporte jurídico.
“A gente constrói uma mentora digital para cada líder, sob medida para sua empresa. Isso significa que criamos uma inteligência especializada em você, por exemplo. Subimos seus testes comportamentais, seus últimos ciclos de avaliação, sua descrição de papel e responsabilidades, então ela vai ser uma grande especialista na Carol [a repórter que vos escreve]”, explica Wagner. “E, cada vez que você conversa, ela conhece mais sobre você, cria conexões e entende ali também quem são as pessoas do seu time, desenvolvendo uma memória específica sobre ele. E isso sob medida, porque a gente faz toda a calibração da cultura e dos valores das organizações, para não ter respostas genéricas.”
A tendência é que chatbots como Mentora façam cada vez mais parte do mundo corporativo. No Brasil, segundo o estudo CIO Report 2025, realizado por duas empresas de tecnologia da informação (a Logicalis e a Vanson Bourne), 83% das companhias daqui pretendem manter ou ampliar os investimentos em IA nos próximos 12 meses. Entre as empresas consultadas, 42% já adotam políticas de IA e outras 49% já iniciaram esse processo.

Democratização do coach-robô
O mercado de coaching movimenta uma fortuna mundo afora. Segundo uma pesquisa da Federação Internacional de Coach (ICF, na sigla em inglês), feita com mais de 14 mil empresas de 157 países, em 2022, a receita global da indústria chegou a US$ 4,56 bilhões – um crescimento de 60% em dois anos. O site CoachRanks avaliou os números da ICF e projetou, para 2025, uma receita ainda maior, passando para US$ 7,3 bilhões.
Tanto dinheiro em torno desse negócio faz sentido. Contratar um coach humano não sai barato – a sessão pode ultrapassar a casa dos R$ 1 mil, valor que inviabiliza o atendimento em larga escala. É aí que a IA entra como uma solução bem mais acessível e democrática: com custos menores, as empresas podem abrir sessões de mentoria e desenvolvimento profissional para ainda mais pessoas. Além disso, os robôs ficam disponíveis a qualquer hora do dia ou da noite – sem julgar medos e inseguranças de quem os procura.
“Quando alguém se dispõe a conversar a respeito de si mesmo com quem quer que seja, inclusive com a IA, acho positivo. Agora, tem de fazer isso com prudência, até mesmo com o ser humano. É preciso procurar alguém que realmente sabe o que está fazendo”, afirma o psicólogo José Ernesto Bologna, professor convidado da Fundação Dom Cabral.
“O líder tem desafios complexos, sofre de solidão, nunca mais é convidado para um happy hour depois da promoção. Quanto mais ele cresce na hierarquia, mais passa a ser observado, e se cobra ainda mais. A IA cria esse espaço de segurança psicológica para ele abrir seus medos, frustrações, as dúvidas e transformar esse potencial em performance”, defende Wagner Cassimiro.
E não só de aconselhamentos vivem os coachbots. A HubSpot, empresa de software, usa IA para simular situações difíceis para líderes. Um exemplo: o sistema pode representar um funcionário machista que interrompe sua gerente o tempo todo. Assim, ela treina como reagir com mais firmeza. Ou pode prepará-la para conduzir uma demissão delicada com um colaborador emocionalmente vulnerável.

Infinidade de dados
No questionário desenvolvido pela Afferolab, especializada em soluções de aprendizagem corporativa, o primeiro aviso é direto: é preciso responder com honestidade e espontaneidade. Logo na sequência, a ferramenta apresenta uma lista de adjetivos – como autoconfiante, carismático, competitivo, etc. – e pergunta: “Como as pessoas desejam que você se comporte no trabalho?”. O usuário marca os termos que considerar compatíveis.
Na etapa seguinte, os mesmos adjetivos retornam, mas agora a pergunta é outra: “Como você realmente é no seu ambiente de trabalho?”.
Em poucos minutos, o sistema gera um relatório detalhado com seu perfil profissional – apontando os traços predominantes, os possíveis conflitos entre expectativa e realidade, além dos seus pontos fortes e aspectos a desenvolver. Para isso, a tecnologia da empresa usa como base as “Arenas de Competências”: emocional, racional, disruptiva (capacidade de inovação e subversão) e transversal (que combina aspectos holísticos, tecnológicos e emocionais).
“Esse é um dos assessments que oferecemos, o mais curto. Mas a nossa metodologia consegue, por meio da inteligência artificial, testar a pessoa. E dizer para o gestor: ‘Olha, esse colaborador está em X nível comportamental de aderência a essa competência sócio-emocional’”, explica Alessandra Lotufo, diretora de desenvolvimento da Afferolab. “Nós conseguimos mapear os comportamentos observáveis e os não observáveis por meio dessa interação com a IA. Avaliamos até mesmo a fala das pessoas, como elas reagem, como se comunicam. E isso a neurociência explica: o nosso léxico está muito ligado ao nosso comportamento.”
Com base nesses dados, a tecnologia pode ajudar a melhorar as soft skills com planos de ação e de estudos e leituras para aprimorar essas técnicas. E ela segue acompanhando sua evolução, por meio dos relatos dessas pessoas em diferentes situações. Com uma vantagem sobre-humana: além dos dados pessoais, as IAs têm em seu acervo uma infinidade de dados e pesquisas científicas que consultam, em questões de segundos, as melhores práticas e conselhos.

Não existe receita de bolo
Em uma conversa com a ferramenta da Afferolab, pelo WhatsApp, Alessandra levou uma pergunta genérica para a IA: “Você pode me ensinar a dar um feedback?”. E recebeu, em resposta, uma sequência de passos a serem considerados: “1. Reflita sobre o que deseja abordar e tenha exemplos bons; 2. Seja específica, cite comportamentos ou ações específicas que precisam ser reconhecidas ou melhoradas: por exemplo, ‘na última apresentação, você não utilizou gráficos, o que dificultou a compreensão dos dados’; 3. Utilize a técnica do sanduíche: comece com um comentário positivo; em seguida, discorra sobre a área a ser melhorada, finalizando com um outro ponto positivo”.
Essa abordagem é justamente uma das principais críticas feitas por coaches humanos: a tendência da IA em oferecer receitas genéricas, sem mergulhar na complexidade de quem está do outro lado da tela. “Eu começaria, numa sessão, perguntando o que é importante garantir nesse processo de feedback. Qual resultado você quer com essa conversa? Qual dificuldade você tem para iniciar esse papo? Por que é difícil? Por que você precisa de apoio para organizar essa conversa?”, questiona a coach executiva Luciana Rovegno, membra do Comitê de Ética da ICF (Brasil) e colunista da Você RH.
Além das receitas pré-prontas, especialistas apontam outro cuidado para levar em conta: as IAs são programadas para nos agradar. Em outras palavras, elas podem ser extremamente puxa-saco – e nos fazer perder o sentido crítico diante das situações.
“Quando o ponto de partida da IA ignora a diversidade dos corpos, trajetórias e experiências, ela transforma o coaching em algo mecânico, insensível e, muitas vezes, injusto. Coaching não é só dar respostas, é fazer as perguntas certas para cada pessoa, em seu contexto. Uma IA que não reconhece pluralidades corre o risco de repetir desigualdades com a aparência de inovação”, afirma Grazi Mendes, diretora de Diversidade, Equidade e Inclusão da ThoughtWorks. “Integrar IA não pode significar apenas velocidade ou redução de custos. No coaching, a IA pode apoiar com dados, frequência e escala, isso é valioso. Mas o que faz a diferença, no fim das contas, ainda é humano: escuta verdadeira, empatia e conexão. A tecnologia tem seu lugar, mas não o protagonismo. O desafio é lembrar que eficiência sem sensibilidade não é avanço. É um atalho perigoso.”

A união dos dois mundos
O vasto repertório de dados e situações ao qual as IAs têm acesso pode oferecer bons insights e estruturas úteis para lideranças e colaboradores. Os próprios especialistas concordam: segundo a ICF Brasil, 56% dos coaches discordam que IA seja só uma moda passageira, e muitos esperam que a tecnologia traga avanços (como facilitar a aprendizagem online e reduzir custos).
Mas isso não significa que elas substituirão os coaches humanos. Pelo contrário: os executivos de empresas de IA concordam que o futuro passa pela coexistência.
“Essa é uma ferramenta habilitadora do desenvolvimento humano, para que as pessoas possam se aprimorar com rapidez, franqueza e profundidade. Mas, pelo amor de Deus, não larguem tudo só para a IA! O interesse é levar nossa expertise em escala, por isso nosso time inclui psicólogos, antropólogos, jornalistas e outros profissionais”, afirma Alessandra Lotufo.
“Quando estamos lidando com aspectos emocionais mais profundos, como uma retificação de crença, por exemplo, recomendo fortemente a presença de um humano. É ele quem vai ajudar a ‘descascar a cebola’ até que a pessoa consiga ressignificar aquela atitude”, complementa Wagner Cassimiro, que também tem uma equipe formada por mentores e psicólogos em sua empresa.

Essa relação, para ser harmônica, precisa de regras e ética – e de inclusão. No Brasil, os dados armazenados pelas IAs devem seguir à risca as normas de privacidade e sigilo resguardadas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) – e, por isso, nenhuma das conversas com a IA pode vazar.
“Sempre que a pessoa acessa a IA pela primeira vez, precisa aceitar os termos. Tem de saber que a empresa vai analisar você de um jeito ou de outro. Os dados são anonimizados, ninguém vai saber o que você escreveu. Não é interessante nem para a empresa, tirar a privacidade de seus funcionários. Isso quebra a confiança”, diz a executiva da Afferolab.
Ainda existe um longo caminho para afiar e melhorar essa relação entre humanos e algoritmos – mas, se bem calibrada, ela pode render boas conversas. E melhores decisões.
COMO FUNCIONA A IA NO COACHING
Um glossário básico para entender o cérebro dos coachbots.
- Machine Learning
É a base de muitas IAs. Em vez de seguir instruções fixas, a IA “aprende” com exemplos – identifica padrões em dados e ajusta suas respostas com o tempo.
- NLP (Processamento de Linguagem Natural)
É o que permite à IA entender e gerar linguagem humana, tornando-a capaz de interpretar perguntas, responder com fluidez e distinguir tons emocionais.
- LLM
São modelos treinados com bilhões de palavras e exemplos de linguagem, como o ChatGPT. Podem ser adaptados para finalidades específicas, como os coachbots.
- Análise comportamental
Com base em interações, respostas e vocabulário, a IA identifica traços de personalidade e competências socioemocionais – como empatia, liderança ou insegurança.
- Avaliação de soft skills
Ao cruzar testes, diálogos e dados, a IA consegue propor planos de ação para melhorar habilidades como comunicação, criatividade e inteligência emocional.
Este texto é parte da edição número 99 (agosto e setembro) da Você RH impressa, que chegará às bancas no dia 1º de agosto. Acompanhe nosso site e nossas redes sociais para não perder o lançamento!