Trabalho opcional: liberdade de escolha ou privilégio de poucos?
Para o bilionário Elon Musk, avanços em inteligência artificial criarão tamanha abundância que milhões de robôs cuidarão de tudo para os seres humanos.
E se eu dissesse que você nunca mais vai precisar trabalhar? Elon Musk soltou exatamente essa previsão dias atrás: em 10 a 20 anos, ter um emprego seria opcional, um hobby como jogar videogame ou cultivar uma horta no quintal. Segundo o bilionário, avanços em inteligência artificial e robótica criarão tamanha grandeza que milhões de robôs cuidarão de tudo para os humanos.
A visão de Musk representa um cenário de “abundância sustentável”: humanos vivendo de renda básica universal elevada, com amplo acesso a saúde, moradia, alimentação e transporte de qualidade. Nesse futuro, trabalhar seria opcional – “provavelmente nenhum de nós terá trabalho”, disse Musk recentemente. Governos poderiam adotar modelos econômicos como a Renda Básica Universal (RBU) para redistribuir a riqueza gerada pelas máquinas, garantindo que as pessoas tenham rendimentos mesmo sem empregos formais.
Mas uma RBU seria apenas parte da solução, pois ela não resolve a perda de dignidade e propósito atrelados ao trabalho, uma preocupação fundamental na relação das pessoas com suas ocupações. Sem isso, corremos o risco de virar uma geração de entediados ou, nas palavras do historiador Yuval Harari, uma possível “geração de inúteis” economicamente irrelevante.
Outras possibilidades, além da RBU, começam a ganhar tração, como a taxação de robôs em substituição à mão de obra humana, a criação de fundos públicos com participação cidadã em empresas altamente automatizadas e o reconhecimento econômico de atividades sociais e de cuidado que são, hoje, invisíveis no PIB. Nenhuma dessas soluções é simples ou isolada, mas todas respondem à mesma urgência: encontrar novas formas de sustentar a dignidade quando o emprego tradicional deixar de ser o centro da vida econômica.
Segundo a Forbes, metade dos estudantes de Harvard já anda preocupada que a IA acabe com suas futuras carreiras. Ou seja, o medo de se tornar descartável é real e imediato. Se trabalho virar videogame, qual será nosso high score de propósito? A última coisa que queremos é um futuro estilo Idiocracy – abundância tecnológica de um lado, seres humanos emburrecendo do outro.
Transformação profunda
No entanto, nem todos os líderes de tecnologia concordam com Musk. Jensen Huang, CEO da NVIDIA, acredita que a IA não eliminará o trabalho, mas o transformará profundamente. Em vez de lazer perpétuo, ele prevê que os ganhos de produtividade da IA nos deixarão “mais ocupados do que agora”, pois novas ideias e projetos surgirão para preencher nosso tempo.
Essa divergência de visões – trabalho opcional versus trabalho aumentado pela IA – reflete a incerteza sobre o horizonte temporal dessas mudanças. Do ponto de vista macro, instituições globais projetam impactos significativos, porém ambíguos, da IA no emprego. O Fórum Econômico Mundial estima que tendências tecnológicas e demográficas criarão 170 milhões de novos empregos até 2030, ao mesmo tempo em que 92 milhões de funções atuais serão eliminadas – um saldo líquido positivo de +78 milhões de empregos globalmente. Essas novas vagas viriam tanto da própria revolução tecnológica (especialistas em IA, big data, fintech etc.) quanto de transições verdes e cuidados de saúde para populações envelhecidas.
No curto prazo, porém, há sinais de disrupção dolorosa. Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (Banco Central dos Estados Unidos), afirmou este mês estar “acompanhando de perto” os efeitos da IA no mercado de trabalho. “A geração de empregos está perto de zero”, disse Powell, que também observou que muitas companhias estão congelando contratações ou demitindo funcionários citando a IA como motivo.
Para trabalhadores, isso se traduz em insegurança e pressão: inúmeros layoffs recentes em empresas de tecnologia (Meta, Google, Amazon, Microsoft, entre outras) eliminaram dezenas de milhares de postos ao mesmo tempo em que investem bilhões em projetos de IA. Em outras palavras, enquanto a “utopia” da não-obrigatoriedade do trabalho pode despontar no horizonte, os sinais atuais apontam para um período de transição turbulento, marcado por substituição de empregos (sobretudo os repetitivos e de entrada) e necessidade urgente de adaptação.
Abundância para quem?
Musk pinta um futuro de abundância, mas não podemos ignorar a pergunta espinhosa: abundância para quem? A história mostra que revoluções tecnológicas raramente distribuem os lucros de forma igual. Um estudo do FMI alerta que a IA pode aumentar o abismo entre países ricos e pobres, atraindo investimentos para os lugares já automatizados e deixando economias emergentes a ver navios, com perda de empregos onde mão de obra barata era a vantagem competitiva.
Alguns felizardos altamente qualificados poderão pendurar a chuteira e viver bem sem emprego, sustentados pela automação. Já milhões de outras pessoas não terão essa bonança e vão seguir trabalhando porque precisam. Como resumiu Ali Gohar, executivo de tecnologia: “A maior divisão será entre aqueles que poderão se dar ao luxo de não trabalhar e os que não poderão”. Em outras palavras, o trabalho opcional pode virar privilégio de elite.
No âmbito corporativo, as organizações campeãs no futuro serão aquelas que transformarem seus funcionários em “supertrabalhadores” aumentados por IA, e não simplesmente substituírem humanos por algoritmos. E isso exige visão estratégica. Desenvolver talentos internamente pode sair mais barato, ser mais rápido e ainda render reputação. Programas de reskilling e upskilling precisam deixar de ser iniciativas pontuais para se tornarem parte central do planejamento de negócios, com investimentos constantes em treinamentos, parcerias educacionais e trilhas personalizadas de desenvolvimento.
E não, não dá para fazer isso sozinha. As grandes empresas precisam parar de brincar de inovação solitária e se juntar a quem entende do jogo: universidades, organizações sérias, hubs de tecnologia e até mesmo com o poder público para ampliar o acesso à capacitação de qualidade e acelerar o reencaixe profissional da população.
Como cada geração pode se preparar
Se você tem 20 e poucos anos, sabemos que chegou ao mercado em meio ao caos criativo da IA generativa. Já vocês, da geração Z, sacaram que carreira linear é coisa do passado e que o lance é ser flexível, aprender rápido e não casar com uma só profissão. É daí que vem a tendência do polyworking, quando muita gente jovem (entre outros) acumulam vários trabalhos ou “hustles” ao mesmo tempo, em vez de depender de um salário só. Não é exagero: no Brasil, 60% dos profissionais já têm dois ou mais empregos, sejam para garantir a segurança financeira (objetivo número um, com 31% dos casos) ou para juntar grana extra e perseguir um sonho pessoal.
Mas aqui vai um toque de realidade para quem tem cerca de 20 anos: correr várias trilhas ao mesmo tempo pode até dar autonomia, mas aumenta o risco de tropeçar no próprio excesso – então cuidado, pois burnout é uma cilada bem 2020’s.
Já para quem está na casa dos 40 anos, a conversa é outra. Talvez você tenha crescido acreditando no emprego estável, na carreira única… esquece. Chegou a hora de se reinventar, misturar experiência com um pouco de ousadia de iniciante. Os mais velhos no jogo têm vantagem de bagagem, mas precisam perder o medo de voltar a aprender do zero. A atualização constante já não é mais opcional; ela é questão de sobrevivência profissional. Em suma: aos 20, você surfa a onda; aos 40, aprende a pilotar o jet-ski para não ficar para trás.
O novo profissional: empreendedor de si mesmo
Num futuro onde empregos formais podem encolher, cada pessoa vira meio que uma startup de um único funcionário vendendo seu peixe em diferentes mercados. Isso significa entender de negócio (e não apenas da sua técnica), construir marca pessoal, identificar nichos onde humanos ainda fazem diferença e, claro, aproveitar a tecnologia a seu favor – não lutar contra ela. É como destacou Huang: “a IA não vai roubar seu emprego; quem vai roubar é alguém que souber usá-la”.
Ou seja, trate de pôr as inteligências artificiais para trabalhar com você se tornando um profissional aumentado pela tecnologia – e não substituído por ela. Em vez de ficar à mercê de cortes ou da obsolescência, é melhor cultivar vários caminhos. Pode ser um negócio paralelo, consultorias, cursos online que você ministra. O mais importante é não colocar todos os ovos na mesma cesta corporativa.
E essa transição requer mais do que vontade. Ela exige preparação concreta, inclusive financeira. Mudar de área, se requalificar ou desacelerar para adquirir novas competências pode significar instabilidade temporária. É fundamental ter clareza sobre esse impacto, rever o orçamento, construir uma reserva direcionada, antecipar cenários, afinal, transições bem-sucedidas não são impulsivas, mas planejadas. Reposicionar-se aos 40 anos é absolutamente possível tendo disciplina e pragmatismo. Não se trata de romantizar uma segunda carreira, mas de tratá-la com o mesmo rigor e estratégia que se dedicou à primeira.
O trabalho do futuro, seja opcional ou multiplicado em side jobs, exigirá de nós uma combinação de resiliência, aprendizado e propósito autêntico. Não trabalhar pode até se tornar uma opção para alguns, mas não ter utilidade nunca deveria ser.
Como executiva e observadora provocadora, deixo meu recado final: trabalho opcional não significa vida fácil. Significa que só os relevantes de verdade vão poder ‘escolher’ trabalhar, enquanto os demais poderão ser empurrados para a irrelevância. A diferença entre utopia e pesadelo estará na nossa postura. No fim das contas, não é sobre tecnologia, mas humanidade – e essa, eu espero, nunca será completamente automatizada.
*Adriana Melo é especialista em finanças e mentora financeira.
10 previsões para DE&I em 2026
Questionamentos de Aristóteles para uma vida que vale a pena ser vivida
Por que tantos profissionais se perdem na transição de carreira?
Neurocomunicação: os caminhos da ciência para hackear a atenção dos colaboradores
Liderança ausente: o que acontece quando o chefe “deixa rolar”







