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“Já me falaram: ‘Você é presidente, não precisa mais se considerar negra’”

Rachel Maia, conselheira executiva e ex-CEO da Lacoste, lança livro sobre sua trajetória até a alta liderança

Por Hanna Oliveira
Atualizado em 23 out 2024, 13h41 - Publicado em 25 mar 2021, 12h03
Na imagem, Rachel Maia, uma mulher negra, de aproximadamente 50 anos, aparecendo sorrindo, vestindo uma blusa esverdeada e de cabelos trançados. Atrás dela, um fundo cinza de estúdio fotográfico.
 (Claudio Gatti/Divulgação)
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Em tempos de pandemia, o olho no olho e o encontro físico ficaram de lado. Mas conversar com Rachel Maia, executiva que já esteve à frente de empresas como Lacoste Brasil, Pandora e Tiffany & Co, é uma lembrança das boas conversas presenciais. Sua risada é como um convite para sentar-se mais perto para ouvir o que ela tem a dizer.

É assim também seu livro Meu Caminho Até a Cadeira Número 1 (Globo Livros), lançado no início deste mês. Nele, Rachel se propõe a ter uma conversa com seus leitores falando tanto sobre a trajetória que a levou até a posição de presidência de grandes empresas quanto sobre os desafios pessoais ao trilhar esse caminho. A executiva, que hoje ocupa cadeira em conselhos de empresas como Grupo SOMA e CVC Corp, conversou sobre o livro com VOCÊ RH. Leia a entrevista a seguir.  

O livro parece ter sido construído com o intuito de construir uma conversa sincera com o leitor. Foi esse o desejo? 

Fui dando um passo de cada vez no livro. Não pulei da infância para o corporativismo, eu quis dar a cronologia para fazer sentido uma história que, para mim, a cadeira número uma era a presidência, mas não significa que para você a cadeira número um seja isso, pode ser que para você a cadeira número um seja ser a melhor repórter do ano. E isso sempre tem que ser o melhor daquilo que você fizer. Não significa que você nunca vai ser reprovada, não significa que você vai ser uma aluna de média 8, 9, ou ser uma aluna de nota 10. Não significa nada disso. Significa que o valor definido por você, só você pode definir, ninguém mais.

 

Por vezes, a trajetória de um líder é pintada como uma estrada solitária. No seu livro, você destaca a força da coletividade. Qual foi a importância disso na sua história? 

Existe um passado de um presidente isolado e sozinho, que não é o meu estilo, e que eu acredito que não seja mais o novo modus operandi. Inclusive, a presidência demanda uma parte de comunicação. Então, como é que você pode não demandar a coletividade, sendo que você está construindo algo? E o poder dessa coletividade vai além do estar dentro da empresa. Contar com stakeholders externos é imprescindível. Quando eu digo stakeholders externos, falo em parceiros e competidores. Este poder do coletivo ajuda um ao outro, faz impulsionar para próximos passos. As pessoas foram imprescindíveis no meu crescimento. Eu não fiz sozinha, pelo contrário. Eu só fiz, porque tinha um coletivo.  Eu vejo, vivencio e estimulo outros a fazerem da mesma forma. 

Você também destaca a necessidade de desenvolver pessoas. De que forma isso te transformou?

Precisamos desenvolver as pessoas e não ter medo delas assumirem a sua posiçã, porque desenvolver é sucessão. Essa minha trajetória de desenvolvimento começou na Novartis, quando uma pessoa da minha equipe, que eu desenvolvi, chegou à posição de controller. Na Tiffany, inclusive, eu fui madrinha do CFO que ficou no meu lugar. Depois, na Pandora, aconteceu a mesma coisa. Isso tudo é muito bom porque estamos usando o coletivo a nosso favor. Isso ajudou no meu lado profissional também, de ser mais humana.

Uma revelação interessante no livro é que você largou o sonho de ter uma carreira na aviação para atuar com finanças. Como foi isso?

Sempre tive meu pai como inspiração e ele trabalhou por 33 anos na aviação. E eu adorava a possibilidade de viajar pelo mundo, como ele viajava.Então, fiz um curso de licença de voo meio em segredo, só a minha mãe sabia. Eu passei na banca da Varig e pensei que estava brilhando, que ele iria achar o máximo. Mas tomei uma invertida do meu pai. Ele disse: “Então, caboclinha, primeiro você tem que estudar”. Fiquei de bico e sem falar com meu pai por quase seis meses. Mas depois eu agradeci: fiquei (e ainda sou) apaixonada pelos números. Acho que foi isso que me instigou a ser uma pessoa mais orientada pelo planejamento. Foi uma grande ruptura e só aconteceu por causa do meu pai.

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Quais são a habilidade técnica e a habilidade comportamental que foram mais importantes para a sua liderança? 

A competência comportamental, sem dúvidas, é a minha fortaleza com pessoas. Do ponto de vista técnico, vem o planejamento. Não significa que eu não arrisco, mas que eu preciso de, no curto prazo, ter um plano estratégico para entender o próximo passo. 

Sarah Maria, sua filha, mudou sua vida e há uma passagem marcante no livro sobre sua maternidade e o dia a dia sendo uma lactante indo ao trabalho. Ficou algum episódio desse período na sua memória?

Uma vez, na Pandora, eu tive que sair da reunião porque me avisaram que minha blusa estava molhada.  Mas não estava “molhada”, estava lambuzada de leite. Na época, Sarah estava com dois meses e eu tinha muito leite. Muito leite. Eu colocava alguns adesivos nos seios, colocava um plástico por cima e, mesmo assim, transbordava tudo. Era muito engraçado e todo mundo viveu comigo aquele momento de maternidade.

Hoje você é uma voz ativa na questão racial e de gênero. Mas, ao longo da sua carreira, existiram momentos em que suas identidades racial e de gênero foram apagadas?

Claro. Porque nós vivemos em um país é racista. A América Latina é completamente racista e existe um processo de embranquecimento. Se todos aqui tivessem zero de reticência para falar sobre a sua origem e sobre a sua árvore genealógica, esse tema seria abordado de uma forma muito mais instrutiva. Mas as pessoas têm reticências para falar do seu fenótipo, do seu histórico, da sua origem. E eu gosto de provocar. Confundem muito o título com a pessoa. Já me falaram: “Você é presidente, não precisa mais se considerar negra”. Uma coisa não tem nada a ver com a outra e, ao mesmo tempo, tudo se funde. Sou uma pessoa só. 

Acredito que a responsabilidade parte do indivíduo. Quão responsável você tem sido em se educar, em se letra sobre isso? No Brasil nossa ascendência ficou apagada, vergonhosa. Mas não mais. Você sabe que eu tenho descendo de rei e de rainha africanos? Tenho muito orgulho. Eu não vou parar de falar isso nunca, para todo mundo. Respeito nos é devido, pois existe uma dívida social e temos que nos posicionar com muita transparência e muita convicção. Afinal de contas, representamos 56% dessa população. E a outra parte também descende, mas não reconhece.

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Qual mensagem você deixa para as muitas “Rachels” que estão iniciando suas trajetórias profissionais?

Existem várias por aí e muitas muito melhores do que eu. Mas eu percebi as oportunidades no momento certo. Às vezes ficamos achando que sabemos de tudo e prestando tanta atenção no ego que esquecemos de prestar atenção nas oportunidades. Temos que perceber a oportunidade e fazer com que aquela oportunidade vire um benefício. É imprescindível. Perceba as oportunidades. Que essas muitas Rachels, Fabíolas, Martas, percebam as oportunidades. E, muitas vezes, essas oportunidades, não vão te fazer a mais popular do grupo. Mas você quer um bem maior ou você quer um bem do grupo, do seu próximo? Você faz o teste do pescoço? O quão plural, diverso, você está sendo na sua vida? Como de fato você pratica a pluralidade? Existem várias pontas que levam a reflexões de vida. E meu livro instiga a ter essas reflexões.

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