Saúde mental é lei. Mas isso não é suficiente: as regras do jogo precisam mudar
As empresas continuarão adoecendo os profissionais enquanto não revisarem metas de produtividade, políticas de remuneração e afins.

Não é exagero dizer que estamos diante de uma crise de saúde mental. Em 2024, foram 470 mil afastamentos por ansiedade e depressão, segundo o Ministério da Previdência Social. É o maior número em 10 anos.
Esse tema, cada vez mais presente no mercado de trabalho, também está ganhando mais espaço na legislação.
A partir de maio, gerenciar riscos psicossociais nas empresas será obrigatório, conforme a nova NR-1. E o Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental, criado pela Lei nº 14.831 de março de 2024, vai reconhecer o compromisso das empresas com o bem-estar dos colaboradores – o que certamente é um diferencial competitivo.
Mas, afinal, o que significa ser uma empresa comprometida com o bem-estar?
Do ponto de vista legal, a certificação criada pelo governo federal se apoia em três pilares: promoção da saúde mental, bem-estar dos colaboradores e transparência na prestação de contas.
1. Promoção da saúde mental
As empresas certificadas devem implementar ações estruturadas para garantir o acesso a recursos psicológicos e psiquiátricos, capacitação das lideranças e campanhas de conscientização. Isso inclui:
- Programas contínuos de suporte psicológico, com atendimento especializado e canais de apoio emocional;
- Campanhas educativas para sensibilizar os colaboradores sobre a importância da saúde mental;
- Treinamentos e workshops para gestores, capacitando-os a identificar sinais de sofrimento mental e apoiar suas equipes;
- Políticas de combate à discriminação e ao assédio, que garantam um ambiente de trabalho seguro, respeitoso e inclusivo.
2. Bem-estar dos colaboradores
A saúde mental está diretamente ligada à qualidade de vida. As empresas desempenham um papel fundamental ao:
- Assegurar um ambiente de trabalho seguro, física e emocionalmente;
- Incentivar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, por meio de políticas de flexibilidade e descanso adequado;
- Estimular a prática de atividades físicas e momentos de lazer;
- Promover a alimentação saudável dentro e fora do ambiente corporativo;
Fomentar uma cultura de comunicação aberta, onde os colaboradores se sintam ouvidos e valorizados.
3. Transparência e prestação de contas
Para garantir a credibilidade da certificação, as empresas precisam demonstrar seu compromisso com a saúde mental por meio de:
- Divulgação clara e periódica das iniciativas adotadas;
- Canais de denúncia e feedback para que os funcionários possam relatar problemas e sugerir melhorias;
- Estabelecimento de metas e indicadores para monitorar o impacto das ações e realizar ajustes sempre que necessário.
O desafio estrutural
A certificação enfatiza o autocuidado e o suporte individual, deixando de lado questões estruturais mais amplas. Entre os pilares que explicamos anteriormente, somente o primeiro faz menção à necessidade de realizar mudanças mais profundas.
O verdadeiro desafio é ter coragem para avançar nessa discussão e abordar questões como modelos de avaliação, metas de produtividade, carga horária, remuneração e outras regras organizacionais que impactam diretamente na saúde mental dos trabalhadores. A regulamentação pode fortalecer esse movimento, mas cabe às empresas ir além.
O estudo Global Human Capital Trends 2024, da Deloitte, destaca que a sustentabilidade humana deixou de ser um diferencial e se tornou uma exigência estratégica nas empresas, fundamental para obter melhores resultados financeiros e gerar impacto positivo na sociedade.
Ou seja: investir no bem-estar dos colaboradores não deve ser uma iniciativa isolada, mas um pilar central do crescimento dos negócios.
Ampliando a discussão
Campanhas de conscientização, pausas no dia a dia, benefícios corporativos e treinamentos são bem-vindos, mas não podemos parar por aí.
O foco excessivo no autocuidado pode levar à responsabilização da vítima: quando um colaborador adoece e se afasta do trabalho, a pergunta geralmente é “como podemos garantir um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional?”. Esse é um questionamento válido, mas insuficiente: ele se baseia na ideia equivocada de que a vida pessoal é necessariamente positiva e a profissional, negativa.
Outro equívoco comum é responsabilizar exclusivamente os gestores. A liderança é frequentemente cobrada por resultados em um modelo de gestão que foi imposto a ela. Um gestor pode reconhecer que sua equipe está adoecida, mas ainda assim precisa bater metas inatingíveis e adotar políticas injustas ou incompatíveis com a realidade do trabalho.
Já vimos esse cenário antes com a Lesão por Esforço Repetitivo (LER/DORT). No início, a culpa recaía sobre o indivíduo. Só quando a classificação foi reconhecida pelo INSS, as empresas começaram a investir em ginástica laboral – e só depois em ergonomia. Ainda houve resistência para implementar cadeiras ergonômicas e outras adaptações, mas, com o tempo, isso se tornou prática comum.
No caso da saúde mental, estamos na “fase da ginástica laboral”. O tema está sendo reconhecido e regulamentado, mas a raiz do problema – a forma como o trabalho é organizado – ainda não é questionada.
A grande ironia é que todos seríamos mais produtivos se o trabalho fosse estruturado de forma mais saudável.
As regras precisam mudar
Se um profissional está submetido a um modelo de gestão que o adoece, nenhuma medida de autocuidado será suficiente para compensar esse desgaste. A longo prazo, a situação se torna insustentável.
A psicodinâmica do trabalho busca compreender o que torna o ambiente profissional saudável, sem responsabilizar apenas o indivíduo. Em vez de julgar colaboradores e líderes, precisamos debater as condições de trabalho.
Por isso, convido CEOs, líderes e profissionais de RH a adotarem um novo olhar sobre bem-estar, baseado no conceito de “ergonomia mental”, que reconhece a organização do trabalho como um fator determinante no processo de adoecimento.
Precisamos questionar as regras e valores que perpetuam esse ciclo. Afinal, além de impactar o ambiente de trabalho, essas regras moldam a sociedade como um todo.
O caminho para um trabalho saudável passa por:
- Substituir a cultura de competição pela colaboração;
- Permitir o desenvolvimento técnico e a evolução pessoal dos profissionais, dosando controle e autonomia de forma saudável. Mais importante que controlar, é confiar e apoiar;
- Redefinir metas para gerar valor para a sociedade, não apenas para obter resultados financeiros;
- Construir regras institucionais visando construir ambientes de troca e reconhecimento;
- Criar canais de apoio para quando um profissional tem queda de performance. Ninguém quer ser incompetente: o primeiro sintoma de doença no trabalho é queda de performance.
A pandemia de adoecimento mental não tem um único culpado. Ninguém busca, intencionalmente, adoecer os outros. Mas a saúde mental é responsabilidade de todos nós.
Ganhar um certificado pode ser um avanço, mas a verdadeira mudança só acontecerá quando as empresas tiverem coragem de questionar as regras do jogo. Estamos preparados para isso?
*André Fusco é médico-psicanalista graduado pela Universidade de São Paulo (USP). Hoje, atua como consultor de saúde mental para empresas.