O déficit do sono
Uma noite maldormida reduz a motivação dos funcionários e a capacidade dos líderes de tomar decisões, afetando a produtividade e os resultados da organização
Há tempos se fala dos prejuízos da falta de sono para a saúde do ser humano. Agora a consultoria de gestão McKinsey alerta sobre esse mal também para o mundo dos negócios. “A deficiência do sono afeta o desempenho dos executivos, por minar comportamentos importantes para a liderança, e pode, assim, prejudicar a atuação financeira da empresa”, escrevem Nick van Dam e Els van der Helm no relatório O Custo Operacional do Sono Insuficiente, de fevereiro de 2016.
Em 2011, a academia americana de medicina do sono já apontava que trabalhadores com insônia produziam em média o equivalente a 11 dias a menos por ano. Para a nação, isso representava um prejuízo de 63 bilhões de dólares anuais. Na época, os autores do estudo anunciaram que, em uma economia baseada na informação, seria difícil encontrar outra condição que impactasse mais a produtividade.
Num mundo hiperconectado, no qual as companhias esperam que seus empregados estejam disponíveis quase 24 horas por dia, e no qual as pessoas optam por se manter acordadas para dar conta de cada vez mais atividades, a questão do sono merece atenção urgente.
Epidemia mundial
Existem mais de 80 tipos de distúrbio do sono, sendo a insônia e a apneia os mais frequentes. Mas, além das patologias, um segundo problema tem prejudicado a nossa saúde: o da restrição — quando alguém opta por dormir menos do que deveria. “Isso virou uma epidemia”, afirma Luciana Palombini, médica especializada no assunto e integrante da equipe do Instituto do Sono de São Paulo.
Em 15 anos, o período de letargia caiu, puxando para seis horas a média de sono nas grandes capitais do país. Criou-se na sociedade a ideologia de que dormir é ruim, que se perde tempo e que é um hábito para preguiçosos. Começaram a surgir também pessoas que, na tentativa de se manterem saudáveis, acordam às cinco horas da manhã para se exercitar.
O problema não está no despertar prematuro, mas na quantidade de tempo com os olhos fechados — e na qualidade desse descanso. Segundo Luciana, as horas necessárias de sono são definidas pela genética e variam para cada um. Mas, de forma geral, todos precisam de sete a oito horas de descanso. Sentir-se bem com menos tempo é uma rara exceção. A médica ainda destaca ser impossível “acostumar” o corpo a dormir menos. “Muita gente dorme seis horas e diz que isso é suficiente, mas o fato é que depois de alguns dias de privação do sono o indivíduo perde a referência do que é bom”, diz.
Uma pesquisa da International Stress Management Association no Brasil (Isma-Br) indica que quase metade das pessoas sofria de algum tipo de distúrbio do sono em 2015 (seis pontos percentuais acima do resultado de 2014). Dessas, 27% relatavam dormir menos do que o necessário, sendo que 18% o faziam por opção própria. Além da menor quantidade, a qualidade do descanso está pior. Ana Maria Rossi, presidente da Isma-Br, afirma que a maior parte dos indivíduos não passa da fase mais superficial do ciclo do sono (a segunda, de quatro), por isso nunca chega a atingir a recuperação plena. “De repente, o profissional se habitua a estar sempre mal-humorado e impaciente. Ele nem nota que atravessa na frente dos outros ou que não espera a porta automática abrir sozinha, sem a sua interferência”, diz a especialista.
Recentemente, a MentalClean, uma consultoria de gestão de saúde, perguntou a 8 000 funcionários de seus clientes como eles se sentiam em relação à qualidade do descanso. Dos que reportavam privação do sono, 32% sentiam cansaço constante, 31% notavam problemas de memória e 30% experimentavam irritabilidade excessiva.
Habilidades comprometidas
No estudo da McKinsey, quatro em dez líderes de negócios afirmaram não dormir o suficiente pelo menos quatro noites na semana; 66% estão insatisfeitos com a quantidade de horas que dormem e 55%, com a qualidade do sono. Apesar de 46% dos executivos ouvidos pela consultoria acreditarem que a falta de sono tem pequeno impacto sobre o desempenho como líderes, recentes investigações provam o contrário.
Pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv, de Israel, concluíram que apenas uma noite maldormida é suficiente para desregular a função das amídalas, grupo de neurônios responsável por processar as emoções no cérebro. Sem a pausa, o ser humano não consegue distinguir se algo é emocionante ou indiferente. Assim, perde a habilidade de decidir o que é mais ou menos importante — o que pode levar a um processamento cognitivo tendencioso e a um julgamento pobre.
Outro documento, da escola de negócios da Universidade de Washington, dos Estados Unidos, garante que líderes com privação de sono são menos propensos a demostrar emoções positivas e, por isso, são tidos como pouco carismáticos. Por sua vez, subordinados com horas insuficientes de descanso tendem a ter dificuldade para perceber emoções positivas. Resultado: a companhia fica cheia de líderes menos inspiradores e de times mais difíceis de serem inspirados.
“Dormir é uma habilidade chave. Há uma relação científica forte entre uma boa noite de descanso e a prontidão profissional”, afirma Malena Martelli, vice-presidente de recursos humanos da Schneider Electric, multinacional francesa especializada em produtos e serviços para distribuição elétrica. Para a RH, quando a pessoa dorme bem, ela consegue desempenhar melhor em questões inesperadas, fora do planejamento. “E o que é o mundo executivo hoje em dia? Na maior parte do tempo, o funcionário precisa ser rápido, flexível e inovador. Tudo isso está relacionado com a presteza oriunda do sono”, diz.
A visão de Malena veio após a Schneider pagar um curso sobre bem-estar e gestão da energia para presidentes, vice-presidentes e diretores que comandam suas operações mundialmente. Agora a companhia adicionou o tema sono no programa de qualidade de vida. A ideia é mudar a falsa crença de que adormecer é ruim. “Dormir é bom, e cabe a nós, líderes, cuidar disso”, diz. Há um objetivo de negócio por trás dessa conscientização: descansados, os empregados produzem mais e melhor.
Atletas corporativos
Em seu relatório, a McKinsey afirma que a qualidade do sono compromete quatro tipos de comportamentos esperados de um bom líder: orientação a resultados, resolução de problemas, buscar diferentes perspectivas e apoiar os outros. Uma noite ruim também danifica os três estágios de aprendizagem: o pré-aprendizado (a fase de codificar a nova informação); o pós-aprendizado (de consolidar a informação); e a prévia da memorização (de reter a informação na memória).
Para Frederico Porto, médico psiquiatra e professor da Fundação Dom Cabral, os executivos modernos têm a rotina de um atleta de alto desempenho. Porém, enquanto estes são obrigados a dormir cedo, aqueles seguem o caminho oposto. “Se é inaceitável que um jogador como o Ronaldo vá a uma balada antes de um jogo importante, por que toleramos que o líder, que administra companhias com orçamentos na casa dos bilhões, não durma?”
Aliás, outro estudo recém-publicado pela Universidade da Califórnia, também americana, aponta que atletas com restrição de sono gastam 4% a mais de energia durante uma atividade e atingem a exaustão 11% mais rápido em relação aos que têm o sono em dia.
Questão urgente
Dos 196 executivos entrevistados pela McKinsey, 36% afirmam que a empresa proíbe que eles tenham o sono como prioridade. E 83% declaram que a companhia não gasta tempo suficiente para ensiná-los sobre a importância do sono.
Para Luciana Palombini, do Instituto do Sono, os profissionais de RH precisam “cuidar disso urgentemente”. As corporações deveriam promover a “semana de conscientização sobre o sono”, para explicar a importância de dormir pelo menos sete horas. E poderiam ensinar sobre a “higiene do sono”: dormir e acordar em horários regulares; só ir para a cama com sono, sem levar o trabalho ou as redes sociais junto; fazer atividade relaxante de 30 a 40 minutos antes de fechar os olhos; evitar café e cigarro; ter um quarto escuro, limpo e silencioso. “A empresa poderia ainda usar um aparelho portátil para mapear os empregados com apneia. Isso ajudaria bastante, uma vez que 30% da população geral sofre desse mal”, diz.
Apesar de poucas, algumas companhias mantêm práticas estruturadas para tratar do problema. Na Schneider, o RH colocou dicas de sono no jornal sobre bem-estar e Malena quer desenvolver uma cultura que aceite a siesta como algo formal. No Google isso é realidade. “Uma das coisas que valorizamos é a ‘power nap’, a parada durante o dia para descansar. Tem gente que opta por ioga, corrida, meditação, cochilo”, diz Monica Santos, líder de RH do Google para América Latina.
Como os funcionários têm demandas diferentes, a empresa fornece espaços para cada escolha. No escritório de São Paulo há a Casa da Fazenda, uma sala com redes, grama e cheiro de campo, para as pessoas sossegarem. Uma placa na porta informa que ali é proibido fazer barulho, falar ao celular ou usar o computador. Para que os funcionários se sintam à vontade, não há controle da movimentação do espaço. “Mais importante do que a parte física, é a cultura corporativa dar essa abertura”, diz Monica.
A mineradora Vale começou em 2003 a mapear a fadiga de operadores de equipamentos pesados e motoristas de caminhão fora de estrada — um grupo que a cada dois dias troca de turno e pode trabalhar durante a madrugada. De lá para cá, a prática evoluiu, ganhou status de Programa de Bem-Estar, e trouxe resultados positivos. Nesses anos de pesquisa, Fabrício Morais Salgado, médico responsável pela iniciativa, percebeu que funcionários cansados, ou com distúrbio de sono, são desmotivados, distraídos e irritados.
Além de tratar adequadamente a questão, a companhia realizou melhorias em máquinas e processos, avaliações médicas e treinamentos sobre saúde. Com tudo, em três anos, houve uma redução de 22% na taxa de acidentes na unidade de Ferrosos Sul.
O impacto da privação do sono está tão claro para a mineradora que, no próximo ano, 7 800 pessoas da operação de Ferrosos Sul, em Minas Gerais, passarão por uma análise para verificar como andam a quantidade e a qualidade das horas dormidas, entre outras coisas. Nesse grupo, estão, inclusive, líderes e pessoas do escritório.
Ao que parece, estimular uma noite bem-dormida pode ser o caminho mais rápido — e barato — para quem deseja melhorar os indicadores de gestão de pessoas e de negócios.