Por que treinamentos de 16 horas podem estar matando o aprendizado
O que a ciência do descanso revela sobre o fracasso de programas tradicionais – e como o RH pode redesenhar experiências para times exaustos..
Sete horas. Esse foi o tempo que demorei para chegar a Ilhabela no feriado da Consciência Negra. Deixei as malas no carro antes de dormir, acordei de madrugada e confiei cegamente no Waze, mesmo quando ele me mandou deixar a Via Dutra e cruzar quase toda a cidade de Jacareí. Nada disso foi suficiente. A previsão de tempo bom – provavelmente aliada a uma necessidade urgente de descanso no final do ano – fez com que mais de 3 milhões de carros deixassem a capital paulista durante os quatro dias do feriado prolongado.
Não foi a primeira vez que enfrentei uma viagem longa para a praia. E, embora o home office tenha me desacostumado a ficar tanto tempo sentado em frente ao volante, segui meu comportamento padrão quando não há nada para fazer: me conformar, escutar música e bater papo.
Depois de umas quatro horas de viagem, era o único acordado no carro e decidi ouvir um audiolivro. Passados uns 50 minutos, provocado pelo texto do livro, comecei a ter ideias. Muitas ideias. No início, elas eram relacionadas ao tema da obra que estava ouvindo: como identificar valores escondidos em ações de aprendizagem corporativa. Com o tempo, o escopo aumentou. Aproveitei que minha esposa acordou para pedir que ela anotasse no bloco de notas do celular os insights que brotavam, quase sem controle.
Essa situação não era nova. O hábito de ouvir textos e livros no carro – ou no avião – esteve presente por muito tempo na minha vida, e escrevi sobre ele no livro Lifelong Learners:
“Coloco um audiolivro para tocar e mantenho o olhar fixo na luz dos faróis que iluminam a estrada. Parece que meu cérebro agradece o foco e me coloca em um nível mais profundo de compreensão e de geração de insights. O Audible, ferramenta que uso nesses casos, permite que eu destaque as partes que me interessam com um toque na tela. Assim, posso voltar e ouvir de novo. Ensinei também a Siri a facilitar meu caminho para gravar mensagens de voz no aplicativo Evernote. Com isso, não perco nenhuma ideia que surja nesse momento nem corro riscos na estrada”.
Detox forçado
Por que esse ritual deixou de fazer parte da minha rotina (o último audiolivro que ouvi foi em outubro de 2024, de acordo com o app)? E, mais importante, por que ele voltou de maneira tão intensa num momento potencialmente insuportável?
Minha hipótese é que sofri um detox forçado. Fazia tempo que não ficava quatro horas completamente desconectado de qualquer estímulo: redes sociais, reuniões online, webinars, séries, livros etc. Fiquei quase envergonhado ao constatar isso, mas percebi que, mesmo quando acabo meu trabalho, são raros os momentos em que estou sem qualquer estímulo, apenas dando espaço para meus pensamentos se organizarem. Ou se desorganizarem. Há ainda o cansaço de um dia dedicado a reuniões, criação de aulas, relatórios e refinamento de método. Faltam tempo e energia, ainda que sobre vontade.
O detox forçado no carro fez bem. Ao longo do feriado, li muito mais do que normalmente faço. Foi nesse estado – descansado, com a mente clara – que alguns insights sobre treinamento corporativo começaram a fazer sentido.
Há poucos dias, vivi uma reunião de briefing em que me foi solicitado o desenho de um programa sobre lifelong learning para líderes. Perguntei qual a expectativa de carga horária e a resposta foi clássica: “pode ser 8 ou 16 horas, presenciais”. Perguntei, despretensiosamente, qual era o motivo dessa escolha. Por que não seis, por exemplo?
Há alguns meses, tive a oportunidade de viver um exemplo concreto dessa provocação. Durante um offsite de liderança da AbbVie, decidimos testar um formato diferente. Em vez de um dia cheio de apresentações e conteúdo sequencial, levamos o time para a Pinacoteca. A agenda misturava arte, uma conversa sobre antropologia com Michel Alcoforado e um debate sobre IA com Ricardo Cavallini. Não havia pressa.
Em vez de preencher cada minuto com atividades, criamos espaço de reflexão, conversas espontâneas e conexões inesperadas entre ideias. E foi nesse contexto que o aprendizado emergiu, baseado mais na percepção do que na transmissão. O resultado foi incrível.
E o tempo para refletir sobre o aprendizado?
O fato é que nos habituamos a esse formato que sobrevaloriza o conteúdo, em detrimento ao tempo de pensar e trocar. Percebo diariamente a resistência de muitas empresas a encontros que não estejam abarrotados de slides e atividades. Espaço para reflexão e troca nem sempre são bem percebidos. Meu incômodo em relação a isso não é novo. Há três anos, quando estávamos voltando para o presencial, apontei num artigo a preocupação de que esse retorno “à normalidade” poderia significar a retomada de práticas antigas de T&D, sem que aproveitássemos as oportunidades de transformação trazidas pela pandemia.
Hoje já sentimos que não temos tempo para aprender, e a tendência é que o futuro aumente ainda mais essa pressão. A inteligência artificial está mudando rapidamente tarefas, papéis e expectativas. O Fórum Econômico Mundial projeta a necessidade de upskilling em escala global, com 92 milhões de novas posições surgindo nos próximos anos.
Ou seja: vamos precisar aprender ainda mais. O problema é que, se continuarmos empilhando informações sem permitir integração, reflexão e pausa, como fazemos há décadas, transformaremos a aprendizagem em ruído. Nossa capacidade de absorver e processar conteúdo tem limites.
Levar adiante o padrão atual significa sobrecarregar a agenda dos times com ações de aprendizagem densas e pouco integradas ao dia a dia de trabalho. Prevejo um time assustado, cansado e talvez ainda mais descrente das iniciativas de desenvolvimento oferecidas pelas empresas.
Mas e se o problema não for falta de conteúdo, como por tanto tempo acreditou o RH, e sim falta de espaço? A ciência já começou a responder a essa pergunta.
Uma rede neural que funciona quando descansamos
Uma série de cientistas tem estudado a Default Mode Network, ou Rede em Modo Padrão (DMN). Trata-se de uma rede neural funcionalmente conectada que se ativa durante estados de repouso ou introspecção e se desativa quando direcionamos atenção para tarefas externas ou cognitivamente demandantes. Em outras palavras, a DMN é ativada quando estamos, por exemplo, descansando, divagando, rememorando o passado, imaginando o futuro, sonhando acordados, fazendo autorreflexão ou conexão interna de ideias.
Foi exatamente isso que aconteceu comigo no carro. Quatro horas sem tarefa externa específica ativaram minha DMN – e os insights brotaram. O mesmo pode acontecer em programas de desenvolvimento se pararmos de temer o tempo vazio.
Em programas de 8 ou 16 horas repletos de conteúdo, quando a DMN tem chance de se ativar? Em que momento acontece a consolidação, a conexão de ideias ou a transformação de informação em insight?
Aqueles 15 minutos de “pausa para café” sem conteúdo programado em um treinamento presencial podem ser, neurologicamente, tão importantes quanto o módulo sobre estratégia. É quando o cérebro consolida, conecta e cria.
Talvez um elemento novo das ofertas de aprendizagem do RH seja a prática do detox. Em vez de pedir o tempo das pessoas para aumentar ainda mais o volume de informação, incluir momentos de repouso, troca e reflexão ativa (com escrita pessoal, por exemplo).
A IA será perfeita para apoiar esse processo, assim como para personalizar formatos e conteúdos para cada um de nós. Uma vez que podemos otimizar o processo de criação de experiências de aprendizagem, talvez possamos passar a atuar também como guardiões do tempo dos times. Nosso papel será o de criar espaços recorrentes nas agendas em que possamos refletir ou simplesmente descansar nossas mentes. Dessa forma, conseguiremos abrir espaço para as mudanças que serão cada vez mais intensas e constantes.
Portanto, no seu planejamento para 2026, além de incluir um upskilling do próprio time de T&D em inteligência artificial (minha sugestão: mergulhe em ITS – Intelligent Tutoring Systems), considere como a área pode atuar na gestão ativa do lifewide learning: tempo para reflexão e aprendizado livre, estímulo à curiosidade e, principalmente, confiança no aprendizado incidental – aquele que acontece como subproduto das escolhas do dia a dia de cada um.
Muitas vezes, para aprender, precisamos do básico: tempo, foco e silêncio para refletir.
PS sobre o uso da IA: não consigo mais imaginar meu trabalho na nōvi sem um uso intensivo de inteligência artificial – especialmente na análise de dados qualitativos, nas reuniões de cocriação e na revisão de textos. Nos meus livros e artigos, costumo usá-la como um leitor extra: alguém que lê comigo, faz críticas, dá sugestões e aponta possíveis ajustes. Escrevo isso porque, tanto aqui quanto no corpo do artigo, você vai notar meu hábito de usar travessões. Como sei que isso virou uma suposta “prova” de escrita por IA, deixo registrada minha defesa: sou eu quem escreve – e sigo defendendo meu direito inalienável de usar travessões.
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