Líderes psicopatas: por que as empresas devem estar atentas ao transtorno
Camuflados por traços de personalidade desejáveis em cargos de gestão, psicopatas podem causar grandes prejuízos às equipes e aos negócios
alvez você nunca tenha pensado nisso, mas possivelmente já conviveu com um psicopata no seu ambiente de trabalho. Se não, tem boas chances de ainda topar com um deles nos corredores. Não estamos falando aqui de criminosos brutais do tipo Hannibal Lecter, de O Silêncio dos Inocentes, ou de Jack, o Estripador, nem de Ted Bundy ou Jeffrey Dahmer, para quem está em dia com a febre das séries de crimes reais exibidos nas plataformas de streaming. Assim como não se pode dizer que todo assassino em série é um psicopata, nem todo psicopata representa risco à integridade física daqueles que cruzam seu caminho.
Na verdade, pessoas que matam a sangue frio e sem arrependimento são apenas a manifestação mais extrema e rara do que chamamos popularmente de psicopatia — e que a Associação Americana de Psiquiatria classifica oficialmente como transtorno de personalidade antissocial. “Em sua grande maioria, psicopatas vivem como pessoas comuns: estão infiltrados em todos os setores da sociedade, frequentam os mesmos lugares que nós, estudam, constroem carreira e família”, afirma a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, autora do livro Mentes Perigosas – O Psicopata Mora ao Lado. São pessoas insensíveis, manipuladoras, transgressoras de regras sociais, desprovidas de sentimento de culpa, remorso ou empatia e capazes do que julgarem necessário para atingir seus interesses e objetivos, explica a médica. “Por serem charmosos, eloquentes, agradáveis e envolventes, não levantam suspeitas e permanecem por muito tempo ou a vida inteira sem ser descobertos ou diagnosticados. Enquanto isso, podem arruinar empresas e relações, provocar intrigas e destruir sonhos”, diz Ana Beatriz.
Prevalência nas empresas
Cerca de 1% da população mundial tem um diagnóstico de psicopatia, de acordo com estudos dos psicólogos e pesquisadores canadenses Robert Hare e Paul Babiak, duas das maiores autoridades mundiais no assunto e autores do livro Psicopatas no Trabalho — Como Identificar e se Defender (Universo dos Livros). Hare é criador do teste usado atualmente como referência para identificar indivíduos psicopatas, o que pode ser feito apenas por psiquiatras e psicólogos. De alguns anos para cá, motivados pelo aumento exponencial do que chamamos de “crimes do colarinho branco” — corrupção, golpes e fraudes financeiras, desvio de recursos — cometidos por executivos de empresas, os dois se debruçaram em mapear a presença e o comportamento de indivíduos com características de personalidade psicopata no ambiente das organizações, em especial em cargos de gestão. Em um levantamento realizado com 203 profissionais ocupando posições de chefia em sete empresas de diferentes portes, 4% apresentaram traços de personalidade típicos de psicopatia — prevalência quatro vezes maior do que na sociedade.
Veja aqui as profissões com mais (e as com menos) psicopatas
Algumas características, como poder de persuasão, foco, frieza para tomar decisões difíceis, ousadia para assumir riscos e certa indiferença em relação à opinião alheia, são percebidas em psicopatas e podem ser muito úteis a quem desempenha papéis de liderança em organizações ou deseja chegar lá, mas não servem para cravar um diagnóstico. “É preciso ter cuidado para não usar essas qualificações para estigmatizar profissionais”, afirma Alexandre Marins, diretor de desenvolvimento e liderança da consultoria em recursos humanos LHH. Afinal, indivíduos com poucas habilidades sociais ou que manipulam e chantageiam, bajulam, mentem e enganam para atingir uma meta de trabalho existem e sempre vão existir. “Chefes frios, exigentes e tiranos, também, mas isso não quer dizer que se esteja lidando com psicopatas”, diz Alexandre.
Para o psicólogo Lucas Rosito, professor da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), uma diferença está no padrão de comportamento: “No caso de psicopatas, as ações nocivas são recorrentes e vêm de longa data, desde a infância ou adolescência, geralmente deixando um rastro de destruição, prejuízo e sofrimento para as pessoas”, diz. Segundo o psicólogo, psicopatas têm total ciência de seus atos, por isso a psicopatia não é considerada uma doença, mas um transtorno de personalidade. “Eles conhecem as regras sociais, mas escolhem infringi-las, sem culpa”, diz. “A deficiência está no campo das emoções e na incapacidade de estabelecer vínculos afetivos: para eles, tanto faz enganar, culpar outros ou maltratar alguém que atravesse seu caminho ou seus interesses, mesmo que faça parte de seu convívio.” De acordo com Lucas, o comportamento seria resultado da interação de fatores genéticos, biológicos e sociais, o que explica também os diferentes níveis de gravidade da psicopatia.
Prejuízo geral
Um estudo publicado no European Financial Management Journal em 2017 mostrou que diretores com comportamentos disfuncionais como os descritos até aqui podem provocar a perda de reputação e de talentos nas companhias, além de prejuízos financeiros, uma vez que tendem a colocar interesses próprios acima dos corporativos.
Identificar um psicopata não é simples, até porque o que o caracteriza é justamente a capacidade de manipular e falar o que as pessoas desejam ouvir em cada situação. Na fase de recrutamento, é possível que ele se mostre um candidato ideal, com um currículo impressionante, boas referências de empregos e projetos anteriores e um comportamento tranquilo durante a entrevista, ainda que seja tudo farsa e camuflagem psicológica. Com isso, a área de recursos humanos precisa estar ciente da existência de profissionais com esse perfil no mercado ou, uma vez que alguém com o transtorno já faça parte da companhia, impedir que cause danos. Para isso, os especialistas recomendam as quatro iniciativas a seguir.
1. Buscar referências
E não só em relação a conhecimentos técnicos, mas sobre o perfil de comportamento do candidato e possíveis problemas de relacionamento que o profissional teve nos lugares onde já trabalhou. Nessa etapa é importante fazer as perguntas certas: se houve alguma denúncia de assédio contra a pessoa e como ela costumava ser avaliada por pares e chefes, por exemplo. Outro sinal de alerta é a passagem rápida por muitos empregos.
Como não se preocupam em construir vínculos sociais ou profissionais a não ser que sirvam aos seus objetivos imediatos, essas pessoas costumam pular de uma posição a outra ou de uma empresa à seguinte em pouco tempo, ou porque criam intrigas e chegam perto de ser ‘desmascaradas’, ou pela baixa tolerância à frustração de não ter seus desejos alcançados”, analisa Lucas. Mas é necessário ter cuidado para não estigmatizar profissionais com trajetórias curtas em algumas empresas, já que esse dado pode estar relacionado a fatores circunstanciais, e não ao transtorno.
2. Garantir um ambiente seguro
“Canais de denúncia, pesquisas de clima e avaliações 360 graus só terão efeito para detectar indivíduos com problemas de comportamento dentro de uma atmosfera psicologicamente segura e aberta ao diálogo, em que o subordinado não tenha medo de ser retaliado, perseguido ou demitido por reportar um chefe disfuncional”, afirma Alexandre Marins, da LHH. “Caso contrário, pode acabar não mudando nada — e, pior, desencorajando vítimas de se manifestar e contribuindo para que deixem a organização.”
3. Educar as equipes, inclusive o RH
É importante que todos na empresa, e não apenas os tomadores de decisão, sejam treinados para reconhecer os sinais e sintomas de comportamentos considerados desviantes. O objetivo é estar atento a comportamentos que possam indicar que algo não vai bem, já que o diagnóstico de qualquer transtorno só pode ser realizado por profissionais.
Exemplos de condutas de alerta são tratar com hostilidade quem está abaixo e com gentileza e adulação quem está acima na hierarquia, por conveniência. Praticar assédio e bullying e humilhar em público são outras atitudes às quais as vítimas em potencial precisam estar alertas para se proteger. Quanto a gestores e parceiros de RH, é importante que sejam qualificados para aplicar e interpretar avaliações de comportamento, testes de personalidade e feedbacks dos times.
4. Reforçar cultura e valores positivos
Modelos de gestão baseados em medo e controle e culturas organizacionais que incentivam a competição e premiam por bons resultados independentemente dos métodos utilizados podem colaborar para o desenvolvimento e a manifestação de características de psicopatia. Revisitar os valores da organização e deixar claro para todos o que é — e o que não é — aceitável, assim como a punição para quem quebrar as regras, torna-se fundamental para não consolidar a mentalidade de que o mundo é dos fortes e os fins justificam os meios.
Esta reportagem faz parte da edição 83 (dezembro/janeiro) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante