Dois dias de licença não bastam: saiba como acolher profissionais de luto
Em seu livro de estreia, a psicóloga Mariana Clark mostra como implementar uma gestão de luto mais humanizada e benéfica para todos. Confira um trecho da obra.
Dois dias consecutivos. É o tempo de ausência que o artigo 473 da CLT autoriza à maioria dos trabalhadores na ocasião da morte de cônjuges, filhos, pais e outros parentes diretos. A exceção se dá no caso dos professores, que, como manda o artigo 320, têm direito a nove dias de faltas sem descontos na remuneração.
Tão antiga quanto a própria CLT, a “licença nojo” (sim, o nome é esse) nunca foi expandida em seus 82 anos de existência. Mas isso pode mudar em breve: no fim de setembro, a Comissão de Assuntos Sociais do Senado aprovou o PL 1.271/2024, que propõe ampliar o afastamento do empregado para até oito dias em caso de falecimento de familiares próximos. O projeto, que agora tramita na Câmara dos Deputados, é de autoria do senador Chico Rodrigues (PSB-RR), para quem o prazo de 48 horas é insuficiente para lidar com a perda de entes queridos.
Veja bem: lidar, não superar. Porque o luto não tem data de validade, como explica a psicóloga Mariana Clark. Tal qual uma montanha-russa, ele é um processo cheio de altos e baixos, sem hora marcada para se manifestar. O luto também é inevitável e não se limita à morte em si. Divórcios, doenças e demissões estão entre as perdas que podem desencadear sofrimento semelhante.
Mas, se a dor é individual, o cuidado dela pode ser coletivo. Inclusive no ambiente de trabalho, onde passamos boa parte de nossa vida. A tarefa não é fácil: de um lado, o profissional esconde o que sente por medo de parecer incapaz de cumprir com suas obrigações; do outro, o líder geralmente não está preparado para oferecer o acolhimento necessário. Mas é possível. Em seu livro de estreia, Lutos Corporativos, Mariana mostra como as empresas podem dar o primeiro passo rumo à implementação de uma gestão de luto mais humanizada e benéfica para todos. A seguir, leia um trecho da obra.
TRECHO DO LIVRO
Capítulo 7: A liderança que cuida
Não é possível mudar a forma como a empresa olha o cuidado e o luto sem olhar também para a qualidade da liderança. A jornada da liderança é duríssima, embora se fale pouco sobre isso. Tradicionalmente, para ocupar a cadeira de líder, busca-se alguém “do tamanho” da vaga quanto a aspectos técnicos. No entanto, em muitos casos, o escolhido pode estar aquém das demandas, ainda que apresente sinais e desejos de se desenvolver e alcançar maturidade e conhecimentos para a adequação ou o fit ideal. Isso quer dizer que, por maior que seja o esforço de sucessão nas organizações e na preparação prévia para ocupar cargos de liderança, o mais habitual é fazer “apostas”. Apostamos em profissionais capazes de assumir novos desafios e os jogamos na “cova dos leões”.
A partir daí, nascem dúvidas, inseguranças, síndromes de impostor(a), ameaças e um bocado de solidão. Essa distância afasta ainda mais o líder da possibilidade de encurtar caminhos para o seu desenvolvimento. Essa sempre foi uma trajetória solitária, porque, além das responsabilidades técnicas, são exigidas responsabilidades para com o outro, o que, às vezes, não está nos planos dos que desejam crescer e assumir posições de mais visibilidade. Ninguém foi treinado para ter essa proximidade, o que aumenta a sensação de solidão.
Ainda hoje é possível dizer que os líderes, em sua maioria, estão distantes do seu time, indisponíveis emocionalmente e atuando apenas na exploração e na cobrança. A verdade é que o líder, que foi ensinado a ser fonte de inspiração, alguém que traz exemplos e possui um saber específico, também sente dor. A maior parte desses profissionais, basilares para uma organização, foi preparada para cuidar de assuntos técnicos, mas não recebeu capacitação em gerenciamento de crise, capaz de prepará-los para enfrentar os altos e baixos da própria vida e da vida de seus liderados.
[…] Durante uma de minhas mentorias, ouvi uma pergunta de um gestor que ilustra muito bem um dos principais dilemas da liderança atualmente: “Por que eu vou perguntar ao meu funcionário como ele está se não saberei o que fazer com a resposta?”
Para falar de dores, perdas e luto dentro do contexto organizacional, é preciso atacar, pelo menos, três crenças habituais no mundo corporativo:
- a liderança precisa ter todas as respostas;
- a liderança humanizada perde autoridade;
- a liderança precisa escolher: ou o comando e o controle; ou a empatia e o acolhimento.
O líder cuidador não perde autoridade?
Liderados não esperam líderes emocionalmente perfeitos, mas emocionalmente honestos. E, ao contrário do que muitos ainda pensam, a intimidade não faz do gestor o terapeuta do funcionário. Na verdade, o líder cuidador tem a sua influência aumentada. Quando a base é o afeto e o cuidado, a equipe responde com colaboração, criatividade e produtividade máximas. Experimente estender a mão para um colaborador em dor e ele retribuirá com um salto qualitativo com relação à performance, aos resultados e ao desempenho, com gratidão e reciprocidade. Posso garantir que a reação é: “Meu chefe é tão incrível que não vou decepcioná-lo, e a qualquer momento serei capaz de dar aquele gás e me superar além do que foi combinado”.
No momento em que um ser humano se conecta com outro, as relações se tornam mais profundas, mais respeitosas, envolvidas em maior confiança, maior compromisso. Enxerga-se a pessoa à frente em toda a sua complexidade e beleza, sem marginalizar, excluir ou desaprovar. A autoridade, o engajamento e a eficiência não se perdem. A tensão provocada pelo medo, que impede a dedicação efetiva das pessoas, é substituída pela aproximação, minimizando sintomas típicos de ambientes tóxicos, como baixa participação das pessoas em projetos coletivos, baixo comprometimento em projetos, baixa geração de soluções e baixa capacidade de inovação.
Assim, quando surge um comportamento diferente ou inadequado, ou uma queda de performance, líderes e liderados conseguem perceber mais depressa a sua origem. Durante uma conversa, uma série de perguntas pode indicar se os problemas são pontuais ou recorrentes e se exigem ajuda especializada. Sei que isso tudo é novidade na formação da liderança. Entretanto, já há quem esteja exercitando esse novo caminho, de forma a descobrir qual é a intimidade possível e confortável para si, como figura mais sábia e hierarquicamente superior. A solução é humana, em toda a sua potência e beleza. Da dor, a matéria-prima mais cancelada, surge a oportunidade de se criarem ambientes menos adversos, menos estranhos e menos ameaçadores. Está formada a base segura.
A empresa e a liderança como bases seguras
Ainda que seja impossível controlarmos alguns fatores referentes ao negócio e à realidade de como as relações se constituem no ambiente profissional, o conceito de “base segura” sugere que a organização seja um espaço confiável, acessível a todos os líderes e colaboradores. E que garanta uma experiência de segurança e proteção, sem que membros das equipes corram riscos interpessoais nas atividades cotidianas.
A organização que se apresenta como base segura segue uma agenda positiva e se caracteriza pela forma coerente e íntegra como se posiciona no mundo, oferecendo a seus stakeholders aspectos como: cultivo de boas relações, aprendizados e pertencimento. Assim, o conceito de base segura, destacado da Teoria do Apego de Bowlby, quando aplicado às organizações envolve:
- a capacidade da liderança de colocar em prática a competência de regulação emocional, bem como de garantir regularidade nas interações com indivíduos e times;
- o incentivo aos indivíduos, que se sentem mais protegidos, para que busquem novos comportamentos de exploração para maior contribuição ao negócio;
- a capacidade da organização de oferecer porto seguro aos colaboradores por meio do equilíbrio dinâmico entre autonomia e independência, bem como estar a serviço da promoção de intimidade, confiança e segurança internalizada.
Esse último item reflete a principal angústia dos líderes atualmente: o quanto acolho versus o quanto cobro pelos resultados do time? Quais são as concessões possíveis para não comprometer o negócio? Essa resposta não existe. O estímulo constante de exploração não exclui a necessidade de acolhimento em momentos de dor. O exercício da liderança se revela justamente na oscilação entre o incentivo à intimidade e o incentivo à produtividade, que será permanente.
[…] Na prática, um líder que atua apenas nas tarefas da intimidade corre alguns riscos: pode se misturar emocionalmente com o outro e, em certos casos, chegar a negligenciar os compromissos com as entregas da área. Por outro lado, o líder que tem foco apenas na produtividade, posicionando-se de forma distante emocionalmente do liderado, corre o risco de estabelecer esse vínculo apenas na zona de pressão e cobrança, negligenciando as questões emocionais do liderado quando elas aparecem.
Em minha capacitação para lideranças, o objetivo é refletir sobre esse novo papel dos líderes, para que eles possam exercer, na prática, o desafio de dançar entre os dois polos propostos no conceito de base segura. O convite que faço todos os dias aos mais diferentes perfis de líderes é que estimulem conversas e diálogos potentes para que seus liderados floresçam e se sintam confortáveis ao procurarem por eles, no caso de sentirem alguma ameaça ou ansiedade. Assim, liderados poderão assumir riscos, porque saberão que contam com ajuda e apoio. Aceitarão desafios, pois se sentirão capazes de resolvê-los, sem medo de pedir ajuda quando necessário. O motivo é simples: quanto maior a expectativa de apoio, maior a verdadeira autonomia e independência.
Este texto é parte da edição número 101 (dezembro e janeiro) da Você RH, que chegará às bancas no dia 5 de dezembro. Acompanhe nosso site e nossas redes sociais para não perder o lançamento!
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