Líderes tóxicos fazem com que tudo permaneça à moda antiga nas empresas
As organizações precisam atender às demandas das equipes, mas esbarram em gestores contrários aos novos ares do mundo corporativo. Veja como reverter isso.
s modelos tradicionais de liderança estão quebrados e representam uma ameaça às companhias.” Essa é uma das conclusões do consultor e professor Bethel E. Thomas, autor de Reinventing Leadership (“Reinventando a liderança”, lançado em março deste ano e ainda sem tradução no Brasil). Após mais de quatro décadas de pesquisas na área, ele afirma que a gestão burocrática e pautada no comando e controle já está inadequada e é pouco inspiradora para as equipes. E o fato é que muitos líderes ainda repetem comportamentos tóxicos e destrutivos – que não funcionam mais.
Ou seja, o presente de muitas empresas ainda está com os dois pés no passado: é conduzido por gestores que insistem no modelo antigo – e por isso são o principal entrave para a adoção de novas práticas. Por exemplo, eles se opõem ao trabalho híbrido, não confiam nos funcionários que trabalham à distância e medem a produtividade por presença física ou horas de batente – e não por entrega. Um estudo feito pela Microsoft com 20 mil pessoas em 11 países aponta que 85% delas acham difícil confiar que os empregados estão sendo produtivos quando em home office. Só que a maioria dos profissionais não quer voltar para o modelo completamente presencial. E esse é só um dos conflitos.
“Antes da pandemia, já vivíamos essa crise de liderança, mas a necessidade de mudança foi acelerada nos últimos anos”, diz Marcelo Treff, professor da FIA Business School e especialista em recursos humanos. Para ele, isso tem ligação com as características da própria sociedade: as organizações ainda são influenciadas por concentração de poder, paternalismo e personalismo.
Isso faz com que a maior parte dos líderes não esteja preparada para atuar nesse novo ambiente. Hoje, além das habilidades técnicas e de pensar em resultados, é essencial desenvolver competências de inteligência emocional, algo que engloba autoconhecimento, autogestão e empatia, habilidade social e capacidade de inspirar pessoas. “Muitos gestores, com o fim do isolamento e a volta ao escritório, mesmo que parcial, estão tentando retomar o modelo antigo de comandar e controlar. Só que isso não é mais possível”, ressalta Treff.
Isso porque a pandemia quebrou paradigmas. O trabalho hoje é mais definido pela fluidez e agilidade, e demanda um perfil de liderança aberto à criação conjunta e ao diálogo – e que vê na própria vulnerabilidade uma vantagem. O status de hierarquia e autoridade está saindo de cena para dar lugar a gestores que permitem que as pessoas sejam elas mesmas, deem opinião, possam errar e tenham autonomia. Segundo Ana Mocny, sócia de consultoria em capital humano da Deloitte, o posicionamento da liderança que sabe e resolve tudo sozinha, como um super-herói, está sendo desconstruído. “O líder, hoje, precisa estar disposto a desenvolver ações e programas ao lado do time e de outras áreas, encarando as decisões como um experimento”, explica. Torna-se fundamental ouvir as pessoas, estabelecer vínculos e conectar os valores da empresa às atividades.
Não à toa, um estudo feito pelo Institute for Business Value (IBV), da IBM, com 3 mil CEOs de companhias em 50 países, incluindo o Brasil, mostra que a gestão de talentos e a mudança de mentalidade da liderança estão na cabeça da maioria dos presidentes. Para eles, o momento trouxe a oportunidade de pensar numa forma diferente de liderar e operar, capaz de explorar todo o potencial corporativo, humano e social. Não que isso esteja sendo colocado em prática pelas lideranças. Nem que seja fácil.
Na visão de 50% dos dirigentes de organizações com alto desempenho, gerenciar a força de trabalho “em qualquer lugar” será o grande desafio dos próximos anos. Já nas empresas com crescimento de receita inferior, essa porcentagem cai para 25%. Ou seja, a vontade de progredir nessa área é diretamente proporcional à capacidade produtiva da empresa.
A pesquisa da IBV aponta que as expectativas de muitos funcionários em relação a seus empregadores mudaram bastante. Eles querem que seus líderes forneçam tecnologia ágil, adotem modelos de liderança mais empáticos e priorizem o bem-estar. Também devem defender culturas flexíveis e inclusivas.
Um novo mindset
Navegar bem nesse mundo demanda sair do discurso e implementar ações efetivas de mudança de mentalidade. Um estudo da Deloitte revela que até existe a intenção de mudar, mas falta preparo. Segundo a pesquisa, feita com 10 mil profissionais de 105 países, apesar de 87% dos executivos de alto escalão reconhecerem que as formas tradicionais (a organização dos trabalhos, onde acontecem e quem se qualifica para as funções) estão mudando, e que desenvolver o modelo adequado é essencial para o sucesso, apenas 24% sentem suas empresas prontas para lidar com isso. “O RH tem o desafio de ajudar as empresas a quebrar as barreiras que as fazem continuar no modelo antigo e incorporar novos valores à cultura, voltados para o aprendizado constante, a inovação, a diversidade e a flexibilidade”, diz Ana Mocny, da Deloitte.
Segundo ela, é difícil dizer qual é o melhor modelo para amanhã ou para determinada empresa. Isso faz com que os líderes percebam que não possuem todas as respostas – o que gera estresse e sobrecarga. “Essa é uma das principais barreiras para a adaptação”, afirma. Nesse sentido, é essencial estimular o trabalho colaborativo entre esses profissionais e que assumam sua vulnerabilidade. “Empresas quebram porque seus líderes se tornam arrogantes, não olham mais para o mercado e se acham bons demais para mudar”, conclui Paulo Vieira, presidente da Febracis, escola de negócios, e autor de livros como O Poder da Autorresponsabilidade.
É aquela história de pensar que, se a empresa cresceu e foi tudo bem até agora, não há necessidade de mudar. Um pensamento que, felizmente, não vingou na Scania.
A fabricante de caminhões vem trabalhando há alguns anos na mudança de mentalidade de sua liderança – o que ajudou na fase mais crítica da pandemia, durante o isolamento social. “Foi o pessoal das gerações mais novas que nos direcionou e permitiu que, de um dia para o outro, trabalhássemos em casa, com a sugestão de ferramentas e tecnologias, e uma atitude mais flexível”, diz Danilo Rocha, vice-presidente de pessoas e cultura da companhia. Ele conta que a experiência foi essencial para que as trocas entre indivíduos de diferentes idades, perfis e cargos aumentassem.
Mas ainda era preciso ir além. Até porque muitos líderes na empresa são de gerações anteriores. “Antes era comum escolher gestores com maior conhecimento técnico e mais tempo de mercado. O perfil ‘eu conheço, sei tudo e sou o melhor dessa área’ era algo normal”, afirma Danilo. Segundo o executivo, o maior papel da liderança hoje é conseguir extrair o melhor de cada um e num ambiente legal, saudável, transparente e de segurança psicológica.
Em abril deste ano, a empresa iniciou o programa Leaders Creating Moments that Matter (“Líderes criando momentos que importam”). A ideia é, por meio de encontros e conteúdos até o final deste ano, apoiar as lideranças nos desafios atuais. Um deles é não apenas tratar de tarefas e metas, mas também construir conexões emocionais com as equipes e criar experiências que inspirem, motivem e engajem.
O primeiro tema abordado foi cultura organizacional e engajamento. Logo virão mais: liderança inspiradora, saúde mental, cultura de inovação, entre outros. A companhia conta, ainda, com os chamados Guardiões da Saúde, um grupo formado por profissionais de diversas áreas, como fisioterapeuta, especialista em terapias integrativas, nutricionista e instrutor de meditação. “Eles são treinados para identificar, junto à pessoa assistida, seu estado de saúde e se algo precisa ser feito”, explica Danilo. A partir dos pontos levantados, terapeuta e participante definem um plano de ação, que vai desde consultas especializadas e cursos até atividades físicas.
Equilíbrio entre resultados e pessoas
A humanização da gestão também tem sido uma aposta da Electrolux. Em 2021, junto do time global de RH, a companhia criou um treinamento específico para os gestores de cada região, elaborado a partir de um modelo que equilibra o olhar para o negócio e para as pessoas. “O objetivo é desafiar as lideranças a exercer um perfil mais humano, empático, protagonista e servidor”, explica Valéria Balasteguim, vice-presidente de RH da Electrolux América Latina. Segundo ela, foi desenvolvido um novo mindset de atuação e comportamentos que, ao mesmo tempo, olha para os resultados do negócio e inspira, engaja e dá empoderamento às equipes.
O processo levou em conta a transformação de sete tensões da liderança, como a empresa denomina, no universo da pandemia e do pós-pandemia. A mudança de comportamento, da oratória para a escuta ativa, foi uma delas: a transformação do líder que sempre dá as respostas, a direção e diz onde cada um deve aplicar sua expertise em alguém que dá espaço para os outros falarem, ouve para entender e tomar decisões, e está aberto para aprender com as pessoas.
“Outra mudança comportamental que eles trabalharam foi o progresso de centralizador para disseminador. Ou seja, a formação de líderes capazes de dar um passo para trás, deixando outros assumirem o controle, e que saibam como passar esse poder adiante para aumentar a eficiência.”
Gestão deve ser individualizada
Para Marina Proença, fundadora da Mentora Aí, uma consultoria para o desenvolvimento de líderes, preparar os gestores para os desafios do século 21 exige, antes, ter em mente que a produtividade está relacionada à ausência de medo, estresse e ansiedade. “É estratégia, mas também escuta ativa. Bater metas, mas também ser feliz no trabalho, permitindo que as pessoas tenham tempo e energia para cuidar de si, da família e dos amigos”, diz. Ela ressalta que, para chegar lá, é necessário moldar um ambiente de bem-estar psicológico.
“O líder precisa se preparar constantemente para criar esse espaço, para que seus liderados possam falar sem medo e sintam que suas demandas e necessidades pessoais e de desenvolvimento estão sendo observadas”, explica Marina. Isso significa manter diálogos de carreira e conhecer cada um do time, numa relação mais estreita e de confiança.
“Não é mais possível padronizar ações e programas. As pessoas são diferentes, de famílias e situações financeiras distintas, e o gestor precisa investir tempo para conhecê-las. Sem isso é impossível ter um ambiente equilibrado e de confiança. Por outro lado, ela diz que é essencial não romantizar o trabalho. “Momentos difíceis fazem parte e estamos passando por um período desafiador. O importante é equilibrar bem isso”, ressalta.
Maria Candida Baumer de Azevedo, sócia da People & Results, uma consultoria de carreira e cultura empresarial, concorda com Marina. Segundo ela, quando um líder ouve diferentes perspectivas e mantém conversas individuais, é capaz de antecipar um problema e até uma dor. “Com isso, ele gera confiança na equipe”, afirma.
Atenta a esses pontos, a Alcoa apostou na criação de espaços de segurança psicológica para as pessoas falarem sobre as dificuldades que enfrentam – tanto profissionais como pessoais. Uma das ações é estimular os líderes a promover conversas diárias com o time. “Mas a ideia é ter escuta ativa, interesse; estar presente. Como boa parte da liderança é de engenheiros, perguntamos mais de uma vez como a pessoa está, por exemplo”, afirma André Rolim, diretor de RH da companhia. Ele explica que não há questões fechadas ou um roteiro. O intuito é identificar se o profissional precisa de algo ou passa por algum problema. “Geralmente, quando fazemos a primeira pergunta, ‘Você está bem?’, a resposta costuma ser padrão: ‘Estou bem’. Com outros questionamentos, fica mais fácil entender se a pessoa realmente está bem”, diz. Por lá, os gestores são incentivados até a checar, antes de uma reunião à distância, se o funcionário está à vontade para abrir a câmera.
“Os acordos são essenciais para garantir relações saudáveis e de confiança”, diz Marina. Para isso, é importante ouvir as necessidades e demandas das pessoas. Sempre, claro, alinhando os pontos ao perfil e à cultura da empresa.
Ela sugere algumas perguntas básicas, como “qual é o horário de trabalho do time?”, “como deve ser o comportamento para responder mensagens?”, “até que horas as mensagens são bem-vindas?”… A partir dos combinados mais simples, o gestor pode ir aprimorando de acordo com o perfil de seu time.
Segundo André Rolim, da Alcoa, as ações incentivaram os gestores a estabelecer acordos com a equipe. Anualmente, há uma conversa entre líderes e liderados para combinar a melhor rotina de trabalho para todos, de acordo com a função.
Mapear para mostrar resultados
Vale lembrar que qualquer mudança demanda tempo. “Trata-se de um processo, e nem tudo é simples. Resistências aconteceram e tivemos alguns casos de gestores que se sentiram órfãos do modelo antigo. Alguns até hoje perguntam quando vamos voltar integralmente ao escritório”, conta André.
O segredo, ele diz, é provar a efetividade do sistema atual de trabalho. “Uso muito os números para mostrar às lideranças que hoje temos mais atração e um acesso a pessoas que antes não tínhamos. Também contamos com um turnover menor e resultados mais consistentes”, diz. Em 2020, a rotatividade nas posições mais críticas era de 30%; depois, o índice caiu para 9,8%. Além disso, a companhia demorava em torno de 110 dias para preencher uma vaga técnica, e agora consegue contratar em cerca de 70 dias.
Como reflexo, mesmo com a possibilidade da volta integral ao escritório, os líderes perceberam que o modelo mais flexível garante mais produtividade, engajamento e integração entre pessoas e atividades, além de atração e retenção de talentos. Também ficou comprovado na prática que os líderes interagem com mais pessoas atualmente do que antes da pandemia.
Um dos desafios agora é otimizar o tempo gasto em reuniões para que todos consigam trabalhar individualmente e com foco. A Alcoa também concluiu que os gestores acabam interagindo mais no modo remoto, dentro e fora do time, do que presencialmente.
Tão importante quanto oferecer desenvolvimento e conscientização é acompanhar a performance dos gestores, analisando principalmente como os resultados foram atingidos e indo além da avaliação tradicional – olhando as entregas, mas também o comportamento. Não adianta mais bater a meta sem analisar se isso custou a saúde da equipe. “O RH deve pensar em uma avaliação mais robusta, que leve em conta a opinião de pares e equipes, numa visão 360 graus”, diz Treff, da FIA Business School.
Pensando nisso, a Suzano implementou, no final de 2022, o Sommos, nova plataforma de avaliação de performance que analisa as entregas dando mais peso ao comportamento das pessoas para realizá-las. Essa mudança ajudou a mapear como o gestor é no dia a dia.
“Estamos num movimento cultural que foca a simplificação e o desenvolvimento de um líder que inspire e transforme para apoiar o crescimento do negócio e das pessoas”, diz Beatriz Salvatori Olivares, diretora de gente e gestão da Suzano. Para que isso fosse adiante, a companhia apostou na capacitação de todo o time.
A primeira etapa foi a implementação de ações de conscientização e esclarecimentos, incluindo vídeos explicativos, materiais de apoio e realização de workshops. Já a segunda fase foi voltada para os líderes da empresa, com temas como a melhor forma de se preparar para dar feedbacks e ter conversas de carreira com a equipe.
A Suzano estabeleceu também as chamadas “regras de ouro”, que são combinadas para ajudar as pessoas a equilibrar melhor vida pessoal e profissional. Uma delas: não ter reuniões no almoço, nem antes ou depois do expediente – as agendas estão bloqueadas antes das 9h e depois das 18h –, além de parar de trabalhar mais cedo na sexta. “Mas cada área pode estipular seus combinados, dependendo da rotina de trabalho”, diz Beatriz.
O combate à liderança tóxica, enfim, é capaz de promover mudanças culturais que vão além dessa questão. No fundo, trata-se da busca por uma rotina de trabalho mais acolhedora. Uma missão que não tem data para acabar.