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Saúde mental na pandemia: “A internet é a cocaína digital”

O psicólogo Cristiano Nabuco explica como a crise da covid-19, o excesso de tecnologia e a falta de reflexão criam uma multidão de anestesiados emocionais

Por Elisa Tozzi
Atualizado em 23 out 2024, 13h36 - Publicado em 21 Maio 2021, 07h00
Imagem mostra uma mulher loira, de fones de ouvidos laranjas, com os olhos fechados e mãos na cabeça, em frente a um notebook
 (Pexels / Karolina Grabowska/Divulgação)
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Aumento dos índices de ansiedade, perda de memória, estresse, irritação e dificuldade em perceber os próprios sentimentos. Essas são algumas das consequências que a pandemia da covid-19 trouxe para a saúde mental. E o uso excessivo da tecnologia – que passou a permear as atividades de trabalho, educação e lazer – pode contribuir para os danos psicológicos. “Por serem silenciosos, há expectativa de que os impactos da pandemia na saúde mental sejam perceptíveis até 2029”.

Quem traz essa perspectiva é Cristiano Nabuco, psicólogo clínico, escritor, professor e especialista em vício digital. Em entrevista a VOCÊ RH, ele explica por que estamos em um época de indivíduos emocionalmente anestesiados que abusam de redes sociais, smartphones e internet na busca por um prazer que só causa mais danos – e nem percebem que os comportamentos estão levando exatamente a isso. “É raro quem passa por uma reflexão profunda, porque dá muito trabalho. As pessoas não têm nem consciência de que estão vivas”, diz.

Nós já vivíamos cercados por telas. A pandemia e o isolamento social aumentaram o nosso uso?

Vemos alguns fenômenos curiosos. Houve um aumento exponencial do uso com a população de baixa renda, que mora em casas pequenas com várias pessoas e em locais onde ficar na rua representa mais riscos do que ficar dentro de casa.

Mas quando olhamos para os jovens de classes mais altas, há uma mudança de comportamento. No pré-pandemia, eles usavam as redes como entretenimento: iam para a escola presencialmente, voltavam para casa e jogavam ou navegavam online. Agora, eles estão estudando na internet e isso criou um efeito paradoxal: quando terminam a rotina de aulas, não aguentam mais a tela – migram para a atividade offline.

Existem essas diferentes manifestações, mas o uso excessivo de tela é uma realidade independentemente do local em que você mora. Eu mesmo fui um exemplo. Atendo nove pessoas por dia e isso nunca tinha sido problemático. Eu ia para o consultório, fazia meus atendimentos e estava cansado no fim do dia, mas conseguia fazer ginástica. Com as telas, eu já estava exausto na hora do almoço.

“Na ausência natural de estímulos, o cérebro desenvolve hiperfoco: vai muito intensamente na atividade para tentar compensar o que está faltando”

Por que as telas são tão cansativas para nós?

Quando você interage com alguém, 75% das informações são não verbais, como a entonação, a mudança verbal, a posição do corpo – se estou falando com você e seus pés estão voltados para fora, por exemplo, isso indica que você cansou e quer ir embora. A narrativa dá contorno àquilo que estamos percebendo da comunicação com o outro. Fazemos isso há milhões de anos. Só que nas telas não vemos direito a outra pessoa. Não sei como está o corpo, não percebo bem as expressões. Na ausência natural de estímulos, o cérebro desenvolve hiperfoco: vai muito intensamente na atividade para tentar compensar o que está faltando. Ficamos exaustos.

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O que falta nas interações com as telas?

Precisamos usar vários recursos além da tela. Sempre que leio um livro, deixo um lápis no meio para rabiscar, anotar do lado, parar para pensar – meus livros são todos riscados porque isso ajuda na fixação. Nesse sentido, tem uma pesquisa interessante que foi feita com jovens adultos. Os pesquisadores dividiram as pessoas em dois grupos: para o primeiro, deram telas (tablets e smartphones) e para o segundo, enciclopédias. A tarefa era pesquisar algum fato histórico, como a Revolução Francesa. O grupo digital achou mais rápido, é claro.

Mas o experimento não acabava aí. Os pesquisadores entravam em contato com os participantes sistematicamente durante certo período: uma semana, 15 dias, 30 dias para entender como estava a lembrança deles sobre o experimento. Depois de 30 dias, o grupo que pesquisou navegando nas telas digitais lembrava que o tema era Revolução Francesa, mas estava com uma memória semântica: sabia onde tinha encontrado a informação, mas não lembrava qual era o conteúdo. O outro grupo lembrava de tudo.

Por que isso acontece?

Com o material impresso, você tem um delay: risca, para, toma um café. É o tempo que o cérebro precisa para a formalização da memória – o input precisa de um tempo para fazer associações, é um processo de ancoragem. Quando você passa a usar as telas, tem um sobrecarga maior sem essa ancoragem. Um artigo recente mostra um experimento com crianças, mas que pode ser extensível a adultos.

O texto diz que o conteúdo digital tem muitos gráficos, sons, cores, ou seja, uma alternância de estímulos que faz com que cérebro gaste mais tempo e tenha mais consumo de energia metabólica. Essa sobrecarga impede de armazenar a longo prazo – por isso a atenção diminui. É hiperfoco, perda de memória, estresse das telas.

“Escolas e empresas foram pegas de surpresa pela pandemia, mas um ano depois ainda usam a mesma rotina presencial no online. Não é a mesma coisa”

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É o tal do Zoom Fatigue?

Criaram vários termos, mas no fundo é estresse das telas. Por isso que os adolescentes estão fechando a câmera durante as aulas. Escolas e empresas foram pegas de surpresa pela pandemia, mas um ano depois ainda usam a mesma rotina presencial no online. Não é a mesma coisa.

Se você está presencialmente no trabalho, pode dar uma andada, encontrar as pessoas, parar para conversar com um colega. A pluralidade de interações cria um descompasso para ao seu cérebro descansar. Nas telas, não. Você vive em overworking, não para mais. É um colega que chama no WhatsApp, o filho que chama em casa, o gato que passa na frente do computador. É uma concentração de coisas acontecendo.

“As pessoas estão carregando um piano mentalmente”

Por isso estamos mais estressados e fatigados?

As pessoas estão carregando um piano mentalmente, porque vivem em um ambiente duplo ou triplo. E há outras questões. Muita gente fugia da casa para o trabalho por ter relacionamentos complicados com o cônjuge, muita gente não convivia de verdade com os filhos e agora convive o tempo todo – e muita gente tem que lidar com isso em casas pequenas.

De um dia para o outro recebemos uma batata quente, e estamos tentando entender. Ainda não sabemos direito o que tudo isso vai acarretar, estamos em pleno voo tentando sobreviver. Mas há alguns estudos que dizem que a pandemia tem quatro ondas: a pandemia em si; a falência do sistema de saúde; o agravamento das doenças preexistentes porque as pessoas deixam de se tratar por medo da covid-19; e a piora da saúde mental. Por serem silenciosos, há expectativa de que os impactos na saúde mental serão perceptíveis até 2029.

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Muitas empresas estão fazendo happy hours, cafés e até ioga virtualmente. Isso funciona?

É tentar remediar algo irremediável, não substitui a interação presencial.

Como tudo isso influencia os funcionários?

O funcionário está sozinho, se sente na obrigação de mostrar serviço e vive a perda do suporte social corporativo. Tivemos, do dia para a noite, um soco no estômago. Algumas pessoas estão conseguindo se reinventar. Muita gente que eu atendo diz que não trabalhará a mesma quantidade do que trabalhava antes da pandemia. Outros perderam o emprego. É uma revolução planetária e todos os indicadores sociais estão em crise.

Estamos vivendo uma mudança nas interações humanas?

A pandemia acelerou em 25 anos as relações sociais e temos um colapso nas relações afetivas. Há perda de relacionamento social, perda de emprego e muitos relatos de separações de casais: agora você é obrigado a ver de verdade com quem você está lidando, não dá mais para jogar debaixo do tapete. E você olha para si mais do que nunca. É por isso que muitas pessoas negam a pandemia, principalmente os mais jovens que não têm recursos psicológicos para lidar com esse colapso geral. O pensamento deles é que “pior do que está, não fica”.

“Ou as pessoas acordam para o florescimento pessoal ou continuam a se adaptar e a viver uma vida capenga”

O que precisamos fazer para conseguir lidar com tudo isso?

Tenho falado muito sobre Aristóteles. Lá atrás a busca pela felicidade já era um tema frequente, era o hedonismo. Aristóteles perguntava: “O que te faz feliz?”. A gente pode responder que é viajar para a praia, tomar uma caipirinha. Mas não é isso que ele estava perguntando. Ele puxava para um termo da botânica: eudaimonia, que significa “florescimento”. Então, temos que pensar: o que eu gosto que me faz florescer? Ou você desenvolve posturas que auxiliam no seu florescimento ou sua vida vai colapsar.

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No trabalho, as pessoas vivem para ter uma promoção, trocar de apartamento, fazer um MBA que vai ajudar a ter um aumento de salário, mas não têm ideia do florescimento. Depois de certo ganho financeiro, a felicidade com isso para de aumentar. Essas pessoas que estão cansadas, irritadas e infelizes levaram um tapa na cara da realidade, que mostrou que você tem um compromisso consigo mesmo. Ou as pessoas acordam para o florescimento pessoal ou continuam a se adaptar e a viver uma vida capenga.

Durante a pandemia, é comum ver notícias de aumento do uso das redes sociais, de mais consumo de bebidas alcoólicas em diversas classes sociais e de crescimento da compra de artigos de luxo entre os mais os ricos. O que esses comportamentos escondem? 

Os gastos altos e a bebida são maneiras de provocar novas emoções e novas vivências. Quando você não tem estímulo, presta mais atenção no que está sentindo. Muitos vivem o emotional numb, ou “anestesia emocional”, quando nem sabem nomear a sensação daquele momento. Alguém diz que não está legal, mas é raiva, tristeza, medo? As pessoas não sabem. Essas injeções de compras e redes sociais são um autoengano.

O uso de rede social cresceu no Brasil, estamos sempre entre os entre os primeiros que mais navegam na internet – ficamos em segundo lugar, só atrás da Malásia. A média mundial é 6 horas e nós navegamos 10 horas por dia. Todo mundo fica entrando e imitando uns aos outros: no Dia das Mães, todo mundo com fotos com as mães, no dia dos animais, todo mundo com foto com os cachorros e gatos. Não percebem o quão ridículo isso é? Temos que pensar fora da caixa, mas as pessoas não conseguem.

“No sentido psicológico, redes sociais, smartphones e internet geram um desserviço, pois o cérebro fica vulnerável”

O que as redes sociais fazem com o nosso cérebro?

Nas redes sociais a maioria das histórias é de sucesso, e as pessoas se sentem incapacitadas ao se comparar com o que é dito, mesmo que aquilo não seja verdadeiro. Quanto maior o uso das redes sociais, maiores os riscos de depressão – uma pesquisa mostra que meninas adolescentes que usam redes sociais por mais de 3h por dia têm 75% a mais de chance de suicídio ou se cortar, como elas estão em fase de desenvolvimento e ficam se comparando com as outras, perdem a autoestima e têm a percepção de que nunca vai alcançar aquilo que vê nas redes. No sentido psicológico, redes sociais, smartphones e internet geram um desserviço, pois o cérebro fica vulnerável. As pessoas estão cada vez mais se perdendo.

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Por que redes sociais são tão viciantes?

É a dopamina que surge quando ocorre uma curtida, um comentário. Mas os padrões das redes são obscuros, quando eu jogo uma informação no Facebook ou no Instagram, eles não vão exibir essas fotos para todos os seguidores – só 5%, 10%, vão aumentando aos poucos. E isso faz com que precisemos ficar olhando a rede para liberar mais dopamina, exatamente como nos caça-níqueis. Temos uma legião de pessoas que precisam dessa dopamina como uma forma de melhorar o bem-estar. Mas não dura. E por quê? Porque por trás disso há mecanismos de manipulação das empresas de tecnologia.

Nos Estados Unidos, o senador Josh Hawley pediu que as redes sociais venham a banir esses padrões obscuros e, agora, há uma campanha nos Estados Unidos para não permitir a entrada de crianças no Instagram – como a rede social divulgou que fará. O cérebro só termina de desenvolver seu freio comportamental aos 25 anos, é um perigo deixar crianças nas redes sociais. Precisamos adotar isso urgente aqui no Brasil também. Mas vivemos um descompromisso, uma cegueira, um processo de alienação.

O smartphone é mais viciante do que os notebooks?

Nesse momento em que as pessoas estão em casa, estamos falando de telas em geral. Então, é meio a mesma coisa. Uma é fixa, a outra é móvel. Mas o que eu vejo de gente que não consegue sair do telefone, que se assusta quando o telefone toca… Leva muito tempo para você ter uma tomada de consciência sobre seus comportamentos. O tempo de maturação só entra na hora em que o indivíduo está pronto. Talvez as pessoas tenham que atingir uma saturação digital para entender que a relação tecnologia precisa ser diferente.

No ano passado, ficou famoso o documentário O Dilema das Redes, da Netflix, e muita gente começou a falar de detox digital. Isso dá certo mesmo?

Logo mais vai aparecer um movimento de menos uso de tecnologia. O problema é que normalmente esses comportamentos são só de manada. Aparece uma onda, todo mundo segue e depois vai seguir a nova onda. É raro quem passa por uma reflexão profunda, isso dá muito trabalho. As pessoas não têm nem consciência de que estão vivas. Há um verso da Cecília Meireles que diz que “a vida só é possível reinventada”. Temos que desenvolver a vida com metas novas, declinar do que não traz satisfação. Mas, no geral, as pessoas precisam competir entre si. É tudo muito raso.

“Vai aparecer um movimento de menos uso de tecnologia. O problema é que normalmente esses comportamentos são só de manada”

Quais são os sinais do vício em tecnologia?

São parecidos com os de um vício em drogas: há alteração de humor quando o equipamento está distante, humor disfórico, dificuldade de regular a quantidade de uso, fissura por usar mais quando a atividade termina. A internet é acessível 24 horas, barata e anônima: é a cocaína digital. Não conseguir ficar longe por muito tempo, negar isso e ficar cada vez mais tempo conectado também são sintomas.

As empresas estão discutindo mais sobre saúde mental desde o ano passado. O mundo corporativo está conseguindo desmistificar o tema?

As pessoas estão começando a perceber que existe uma instância chamada saúde mental. Mas não é a maioria ainda. Algumas  empresas se preocupavam com isso faz tempo. Na fábrica da FIAT em Betim (MG), por exemplo, eles fizeram um projeto chamado Anjo da Guarda. Era um painel magnético com as fotos dos funcionários que podiam escolher ímãs de três cores: azul (estou bem), branco (estou normal) e preto (não estou legal). E cada funcionário tinha um anjo da guarda, um colega que conversava com as pessoas para entender o que estava acontecendo. Com os indivíduos se sentindo olhados e cuidados, aumentou a produtividade e diminuiu o absenteísmo.

A discussão sobre saúde mental é uma primeira tentativa de entender que, por de trás da produtividade e eficácia, existe uma pessoa com dores, dificuldades, recalques pessoais. Se você não olhar para isso, não terá produtividade, mudança, nem motivação. Pode esquecer.

O problema é que todo mundo agora virou especialista em saúde mental. É um risco grande quando surgem coaches disso: a pessoa estuda seis meses e acha que está fazendo a coisa certa. Ou então esses coaches que acham que existe um poder curativo se fizerem alguém se emocionar e começar a chorar. Teremos que passar por um período longo para que pessoas levem a sério o que é saúde mental. Está muito longe ainda. Nas posições de liderança há muitos tiranos gerindo os outros, só preocupados com produtividade.

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