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Como acolher profissionais com câncer

A doença está se tornando mais comum entre adultos com menos de 50 anos – e exige atenção de lideranças e RH. Veja como facilitar esse momento delicado.

Por Luisa Costa
Atualizado em 9 jun 2025, 14h22 - Publicado em 2 jun 2025, 15h00
Colagem feita com recortes de um rosto masculino usando óculos, folhas secas, flores brancas e um grande escritório.
 (Cristielle Luise/VOCÊ RH)
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O imperador de todos os males. Esta é a frase-título de uma célebre biografia escrita pelo indiano Siddhartha Mukherjee, publicada há 15 anos, que lhe rendeu reconhecimento internacional – na forma, por exemplo, de um Pulitzer. O tal imperador é uma doença, o câncer, e o livro explora como diagnosticamos, tratamos e pensamos esse ente maligno nos últimos quatro milênios.

É um título incômodo. Remete ao medo e à incerteza que geralmente pairam no ar quando o assunto vem à tona, embora queiramos evitar. Lembra, talvez, o sentimento de impotência que a doença tende a causar e a onipresença desse monarca: na primeira metade do século 20, o câncer passou da oitava para a segunda principal causa de morte no mundo, atrás apenas das doenças cardiovasculares (posições que permanecem até hoje). Estima-se que houve 20 milhões de novos casos de câncer ao redor do mundo em 2022, e 9,7 milhões de mortes.

No Brasil, especialistas acreditam que o câncer deve se tornar a principal causa mortis até 2030, daqui a cinco anos. Só em 2025, teremos 704 mil novos casos da doença, segundo o Instituto Nacional do Câncer. Falamos “doença”, no singular, de maneira genérica: existem cerca de 160 tipos de tumores. Quatro em cada dez pessoas terão algum deles ao longo da vida. No Brasil, os mais comuns são os cânceres de pele, mama, próstata, cólon e reto, pulmão e estômago, nesta ordem.

O diagnóstico muda a vida de qualquer pessoa, assim como o tratamento. Quem se submete a uma quimioterapia, por exemplo, pode enfrentar fadiga intensa, fraqueza muscular, formigamento e náuseas em decorrência da intervenção. Quem passa por cirurgias complexas, por sua vez, pode ter limitações de movimento, se tornar dependente de colostomias e enfrentar alterações cognitivas. Antes, durante e depois do tratamento, muitos pacientes também apresentam problemas psiquiátricos, como ansiedade e depressão. Um estudo brasileiro publicado em 2024 mostrou que 69% das pessoas com câncer manifestam sintomas clínicos dessas doenças.

São situações que afetam todas as esferas da vida, claro. Mas esta é uma revista sobre trabalho, então vamos a ele: pessoas ansiosas têm dificuldade para se concentrarem em suas tarefas, por exemplo, enquanto os deprimidos acham desafiador encontrar sentido na labuta. Em ambos os casos, há uma tendência a descumprir prazos e diminuir consideravelmente a produtividade. Compreensível: são consequências de condições patológicas que, no caso dos pacientes com câncer, vêm de fatores como uma gigante incerteza sobre o futuro (e, às vezes, sobre sua própria sobrevivência).

Há também, claro, a necessidade de se ausentar do expediente para realizar exames, consultas, tratamento… Cada caso é um caso. Algumas pessoas precisam pausar a carreira, por exemplo, e retornar após completarem a Grande Tarefa que é se livrar da doença. Mas isso também é desafiador: existem muitíssimas denúncias de discriminação no mercado de trabalho contra quem tem (ou teve) câncer, como você verá adiante.

Falar sobre o imperador de todos os males, portanto, não é falar apenas sobre pacientes, médicos, famílias, amigos… Também é sobre profissionais e empresas. Ainda mais levando em consideração que a incidência de câncer entre adultos com menos de 50 anos, em plena idade economicamente ativa, está aumentando. Segundo um estudo de pesquisadores chineses, o número de casos nessa faixa etária aumentou 79% entre 1990 e 2019.

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Por isso reunimos, nesta matéria, orientações de especialistas para que lideranças e RH apoiem profissionais com câncer – e não dificultem um momento que já é tão delicado. Veja a seguir.

Colagem feita com recortes de um homem segurando documentos, usando óculos, folhas secas, flores brancas.
704 mil novos casos da doença devem ser registrados este ano, segundo o Instituto Nacional do Câncer. (Cristielle Luise/VOCÊ RH)

Recebendo o diagnóstico

“É isso, Audre, você está sozinha.” Essa foi a conclusão que Audre Lorde, célebre escritora e filósofa americana, registrou no The Cancer Journals (1980), um compilado de ensaios e trechos de diários sobre sua experiência com o câncer de mama. A autora, uma mulher negra do século 20, sentiu solidão à sua própria maneira. Mas é um sentimento comum entre as pessoas diagnosticadas com a doença – que está relacionado, claro, à depressão. Como atenuá-lo?

Magali Corrêa, head de Capital Humano da Vidalink, empresa de bem-estar corporativo, defende que pequenas atitudes podem fazer grande diferença no dia a dia desses profissionais. “Em primeiro lugar, é preciso agir com empatia e discrição, respeitando o espaço da pessoa e evitando perguntas íntimas”, afirma a executiva. Se o profissional desejar, ele mesmo trará o assunto. É importante deixar claro que ele está doente, mas não é definido por essa condição.

Também é fundamental compreender a realidade dessa pessoa e entender como ela gostaria de ser tratada, antes de apresentar protocolos e políticas preexistentes. Magali argumenta que, para acolher o profissional com câncer, tais políticas podem incluir: a possibilidade de trabalhar remotamente, reduzir a carga de trabalho e alterar os horários do expediente; a inclusão em programas de bem-estar, com acompanhamento psicológico; o oferecimento de parcerias com clínicas, redes de apoio e grupos de escuta estruturados; e comunicação clara sobre direitos trabalhistas, benefícios e encaminhamentos médicos.

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Lembre-se: menosprezar a condição de saúde do funcionário, desestimular a permanência no trabalho ou fazer comentários depreciativos são exemplos de atitudes que constrangem, humilham e isolam o profissional que já enfrenta questões de saúde mental. Além de obviamente desrespeitosa, essa conduta reiterada configura assédio moral, segundo explica Priscila Moreira, advogada especialista em direito do trabalho. E pode, portanto, ter consequências legais para a empresa.

Durante a ausência

Algumas pessoas com câncer preferem continuar suas atividades profissionais, porque o convívio social ajuda a manter a autoestima e a motivação. Outras preferem ou precisam pausar a carreira para lidar com efeitos colaterais do tratamento e se recuperarem de cirurgias – e aí recebem um auxílio-doença enquanto estão afastadas do trabalho [veja no fim desta matéria].

Nesse caso, manter o vínculo com o profissional é importante. “Uma pessoa doente que não recebe apoio ou qualquer comunicação da empresa e de sua gestão faz com que o medo do desligamento aumente e até comprometa as terapias, que vão demandar muito do ponto de vista emocional”, afirma André Fusco, médico-psicanalista e consultor de saúde mental no trabalho.

Segundo Magali, lideranças e RH devem manter essa relação de forma leve, sem cobranças ou expectativas que possam gerar sobrecarga emocional ou mais estresse para o profissional. “O colaborador deve ser incentivado a manter um canal de comunicação aberto, compartilhando limitações, necessidades e preferências sobre como deseja manter esse contato”, explica a executiva da Vidalink. “Sugerir que ele participe dos rituais da empresa, mesmo que remotamente, pode ajudar a manter o sentimento de pertencimento, sem exigir produtividade. Em casos mais críticos, ter contato com a rede de apoio do colaborador também é uma boa ideia.”

André defende que compartilhar novidades, atualizações, planos ou curiosidades sobre o cotidiano da empresa, em conversas casuais, é potencialmente benéfico. “Mas é importante evitar perguntas sobre a doença, o tratamento ou o prognóstico. Isso deve partir do próprio colaborador, se ele se sentir confortável.”

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Colagem feita com recortes de um homem usando terno, folhas secas, flores brancas e um escritório com papéis empilhados.
29% das mulheres com câncer de mama têm a chance de adaptar o trabalho após o tratamento. (Cristielle Luise/VOCÊ RH)

E na volta?

Valéria Baracatt convive há 20 anos com o câncer de mama. E afirmou recentemente, em texto publicado na Veja, que o pior câncer é o preconceito. “Não sou eu apenas que digo isso. Convivo há anos [em seu Instituto Arte de Viver Bem] com outras pacientes e relatos semelhantes: gente que perde o emprego ou não consegue ser contratada. A doença pode impor mudanças na rotina, mas não na nossa capacidade de trabalhar e produzir.”

Por isso, antes de falarmos sobre o que fazer para receber o profissional de volta, vamos ao que não fazer: resumir a pessoa à doença, pressupor limitações e demitir. Além de uma tremenda falta de empatia, isso pode muito bem gerar complicações na Justiça. Segundo Priscila, embora não exista uma previsão legal de estabilidade no emprego específica para pessoas diagnosticadas com câncer, há possibilidade de ela ocorrer em determinados contextos. Um exemplo é justamente a demissão que se baseia no preconceito. “A dispensa de um empregado com câncer pode ser presumida como discriminatória, com base na Súmula 443 do Tribunal Superior do Trabalho e na jurisprudência, o que garante a reintegração ou indenização”, explica a especialista.

Dito isso, o RH deve planejar um retorno gradativo do profissional, assim como preparara equipe e o gestor em questão para acolher o funcionário. “É importante que [os líderes] compreendam os impactos psicológicos e físicos da doença, para poderem adaptar atividades, prazos e jornadas de trabalho, respeitandoos limites do colaborador e equilibrando as necessidades da equipe”, afirma Magali.

Possíveis sequelas do tratamento às vezes demandam jornadas flexíveis, por exemplo, ou a realocação do profissional para funções menos exigentes. Infelizmente, essa compreensão ainda é rara: pesquisadores brasileiros já mostraram, por exemplo, que apenas 29% das mulheres com câncer de mama recebem ofertas de adaptação do expediente e do ambiente de trabalho.

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Outra questão, segundo o médico André Fusco, é que a doença traz queda de performance. E isso pode acontecer antes, durante e depois do tratamento. É fundamental levar isso em conta nos ciclos de avaliação e na definição de metas. “Causa uma enorme sensação de injustiça ser comparado em um ciclo de avaliação com colegas que não enfrentaram uma doença. Isso gera revolta e frustração. Nesses momentos, é essencial reconhecer a contribuição que o colaborador já deu à empresa e demonstrar que ele continua sendo valorizado.”

Segundo o especialista, uma boa ideia é adotar avaliações de performance que comparam os empregados com seu próprio histórico, por exemplo, e evidenciam sua evolução, em vez de compará-los com seus colegas, estimular a competição no escritório e desmotivar um profissional que está passando por um momento delicado como a recuperação de um câncer.

No fim, não existe uma receita de bolo, mas também não é um bicho de sete cabeças. O segredo é ter lideranças e RHs que demonstrem empatia, reconheçam o potencial dos funcionários, busquem compreender dificuldades e revelem sua própria vulnerabilidade, de modo a permitir que outros façam o mesmo. Como sempre defendemos na Você RH, isso é fundamental para criar ambientes de trabalho que se sustentem a longo prazo – que não adoeçam os profissionais e, mais que isso, permitam que eles se recuperem e continuem sua carreira com dignidade.

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PROTEÇÕES LEGAIS

Auxílio-doença, estabilidade e afins: veja os direitos dos profissionais com câncer, previstos pela legislação e pela jurisprudência.

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1. Mais que bom senso

A empresa tem obrigação legal de zelar pela saúde e segurança de seus empregados. Isso significa, no caso de um funcionário com câncer, tomar os cuidados mencionados nesta matéria. “O descumprimento pode configurar conduta negligente e gerar a responsabilização da companhia, principalmente se a postura da empresa venha a agravar a saúde do empregado”, explica a advogada Priscila Moreira.

2. Culpa do expediente

O câncer pode ser reconhecido como uma doença ocupacional se o trabalho contribuiu para seu desenvolvimento ou agravamento – quando há, por exemplo, exposição habitual do funcionário a agentes cancerígenos, como benzeno, amianto e radiações ionizantes. Nesse caso, o trabalhador tem direito à estabilidade acidentária de 12 meses, e a empresa se responsabiliza por danos morais e materiais.

3. Questões de grana

Profissionais com câncer recebem auxílio-doença do INSS caso precisem se afastar por mais de 15 dias consecutivos e têm direito à manutenção do plano de saúde, se esse for um benefício previsto em contrato ou convenção coletiva. Também podem sacar o FGTS e o valor do abono salarial do Programa de Integração Social (PIS) e do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep).

4. Garantia de emprego

Se o câncer for doença ocupacional, o trabalhador tem direito à estabilidade mencionada no item 2 após voltar do afastamento bancado pelo INSS. Se a pessoa passa por uma reabilitação profissional [veja a seguir], não pode ser dispensada da nova função sem justa causa. E, se o funcionário é demitido e a Justiça entende que houve discriminação, ele tem direito à reintegração ou a uma indenização.

5. Mudança de rota

Quem recebe auxílio-doença pode usar o serviço de reabilitação profissional oferecido pelo INSS para, assim, se reinserir no mercado de trabalho caso não consiga realizar sua atividade remunerada original. Se a impossibilidade de trabalhar for definitiva e comprovada em perícia médica pela Previdência Social, o trabalhador tem direito a receber aposentadoria por incapacidade permanente.

Este texto é parte da edição 98 (junho e julho) da Você RH. Clique aqui e confira outros conteúdos da revista impressa.

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