Detetives da IA: como (e por que) coletar dados comportamentais de funcionários
A prática pode identificar insatisfações com salário, sobrecarga de trabalho, questões de saúde... E antecipar crises, evitando de burnout a demissões.
Em 2023, o RH da Petz acendeu um alerta: havia um excesso significativo de horas extras no setor administrativo. As longas jornadas poderiam se refletir em afastamentos e queda de produtividade. Mas era difícil entender por onde começar – só nessa área trabalham cerca de 900 pessoas. A empresa, então, buscou na inteligência artificial uma solução. Bastou um ano para que a ferramenta identificasse os gargalos e a empresa conseguisse reduzir em 50% o volume de horas extras.
A preocupação valia tanto para o bem-estar dos colaboradores quanto para essa rede de lojas de animais de estimação. Se não fosse revertida, a situação poderia gerar perdas financeiras à empresa. Segundo a consultoria Gallup, o excesso da jornada de trabalho, quando ultrapassa as 50 horas semanais, eleva significativamente o risco de burnout. Nesses casos, 63% dos funcionários tendem a tirar alguns
dias de licença médica, e outros 23% precisam de atendimento em postos de saúde emergenciais.
Esse esgotamento eleva o risco de demissões (voluntárias ou não) – e, além dos prejuízos dos dias de ausência do funcionário, aumenta o risco de processos contra a empresa. Um estudo do escritório Trench Rossi Watanabe, divulgado pelo jornal Folha de S.Paulo, mostrou
que, nos primeiros meses deste ano, as ações trabalhistas por burnout cresceram 14,5% – e os pedidos de indenização somavam quase R$ 4 bilhões.
“Esse é um tema que olha para a qualidade de vida do colaborador e também para os custos de pessoal”, afirma Flávia Bossolani, diretora-executiva de RH da Petz. Daí a urgência de evitar possíveis casos de burnout – e então entram as possibilidades da inteligência artificial. A coleta de dados comportamentais de funcionários tem aberto uma gama de possibilidades, entre elas: entender como anda a satisfação dos colaboradores e quais deles estão sobrecarregados, talvez a ponto até de pedirem demissão.
As soluções da IA
Para chegar ao sucesso, a ferramenta da Evope, contratada pela Petz, fez o que a IA sabe fazer de melhor: reuniu milhares de dados em seu sistema. Por meses, a plataforma acompanhou os passos digitais dos funcionários, para entender como e com que gastavam seu tempo de trabalho – quais programas mais usavam, quais processos se repetiam. E detectou que eles despediçavam horas com processos que poderiam ser automatizados.
“Os sistemas não eram todos integrados. Por exemplo, cada ligação exigia copiar dados do sistema de telefonia e colar no de atendimento – um processo repetido milhares de vezes ao dia pelos colaboradores. Era difícil visualizar isso. Quando você coloca uma ferramenta para dar esse olhar mais automático, fica muito mais fácil”, explica Cláudia Marquesani, ex-diretora de tecnologia da Petz – há um ano, ela se transferiu para a Copa Energia, onde implementa o mesmo método.
A medida reduziu parte do volume de horas extras. No caso dos trabalhadores que ainda seguiam com extensas jornadas, com riscos de burnout, a Evope deixou ao gestor outra opção: o bloqueio automático da máquina do funcionário.
Se acontecer o contrário, e o funcionário gastar muito tempo com entretenimento, a IA vai saber também. Ela consegue monitorar todos os movimentos dos colaboradores, com o respeito à privacidade exigida pela legislação brasileira – sem entregar, por exemplo, as mensagens trocadas no Instagram ou o conteúdo dos vídeos assistidos no YouTube. Com essa vasta quantidade de dados, a IA consegue detectar mudanças que indicam insatisfações – ou até a necessidade de abertura ou fechamento de vagas.
“Conseguimos entregar informações sobre um grupo inteiro, de 100 ou 200 pessoas, algo grande, de forma muito mais precisa. Um gestor levaria dias ou meses para avaliar o comportamento de uma equipe desse tamanho, para saber quem está trabalhando muito ou não”, explica Danilo Lira, cofundador da Evope. “Quando pegamos a base histórica de pessoas que se demitiram no último ano e jogamos na plataforma, é possível detectar padrões de comportamento. Por exemplo: naquele período, todo colaborador que fazia muitas horas extras pedia demissão ou era afastado por motivos de saúde ocupacional. É um conceito matemático de estatística que ajuda o gestor a tomar decisões.”
O fator humano
Só tem um ponto: nem mesmo milhões de terabytes de dados e estatísticas podem substituir profissionais e interações humanas – nem mesmo tomar as melhores decisões pelos gestores. A Evope encarrega seus analistas de acompanharem seus clientes periodicamente. “Ele senta com o gestor, explica os insights e pede contextualizações. ‘Vocês têm essa cultura de contar com pouca gente para aumentar a margem [de lucro]?’. O insight da IA precisa estar ligado à cultura daquele lugar. Mas, claro, o cara faz o que quiser com aquela informação”, explica Danilo.
A plataforma da people tech Impulso, que conecta profissionais de tecnologia a empresas ou projetos, inicia sua coleta de dados sobre saúde e motivação dos profissionais a partir de conversas individuais com as equipes. “É um bate-papo qualitativo. Ele traz informações sobre o dia a dia, sobre o ambiente de trabalho, sobre as lideranças. É uma forma de ver se ela está satisfeita ou não com o trabalho”, explica Sylvestre Mergulhão, CEO da Impulso.
Cada interação vira um registro. Isso permite detectar padrões – por exemplo, reclamações repetidas sobre salário, sobre a liderança ou algum projeto – que funcionam como alertas de risco de turnover ou desmotivação. Ao mesmo tempo, as lideranças também são entrevistadas, para comparar a performance registrada do profissional com a percepção dele próprio. Isso ajuda a calibrar decisões de RH e evitar desalinhamentos.
“Tudo isso vai para o nosso banco de dados para ser analisado em massa. Sabemos qual o percentual de pessoas insatisfeitas com o trabalho ou com a liderança. Como temos muitos dados, chegamos aos indicadores de potenciais de riscos. Às vezes, as pessoas estão só insatisfeitas ou desalinhadas com algum projeto, e conseguimos prever se vão pedir para sair dele; então, o gestor precisa só realocá-las. Agora, se estão insatisfeitas há muito tempo, isso é um sinal de alerta”, conta Sylvestre.
Todas essas plataformas devem respeitar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que determina que a empresa informe aos funcionários quais dados está coletando e com qual finalidade. As ferramentas só podem colher informações para compor análises agregadas de clima, engajamento e saúde ocupacional. “Não queremos invadir a privacidade dos colaboradores. Estamos falando de um interesse em comum. As pessoas precisam saber que estão sendo cuidadas, que tem alguém preocupado com elas, e não apenas monitoradas ou controladas. Porque assim elas também chegam a um desempenho melhor.”
O segredo da felicidade
Há outras centenas de ferramentas de IA voltadas para o RH – que prometem entregar milagres, aumentar a produtividade, cuidar do bem-estar ou evitar crises por meio de conversas entre robôs e humanos. Mas nem sempre entregam todo o pacote prometido: melhorar a saúde, a felicidade e a produtividade dos colaboradores.
“Existe um hype em torno dessas ferramentas. A IA permite ganho de escala. Se preciso fazer entrevistas para medir o clima organizacional de uma empresa de mil pessoas, é mais fácil colocar um agente para conversar com elas ao mesmo tempo. Antes, você precisaria ligar ou mandar e-mail para cada uma delas”, diz Marco Marcelino, especialista em dados e gestão do conhecimento. “Nesse sentido, a inteligência artificial tem uma proposta absurda de agregar valor nas organizações. Mas hoje existe um modismo preocupante. Recebo propostas de tecnologia todos os dias para utilizar no meu trabalho de análise de dados. Uso pouco mais de 40 ferramentas, tendo acesso a mais de 800. Poucas são construídas com base em ciência e por pessoas experientes para fazer uma modelagem bem-feita.”
No fim das contas, não há mágica. Nenhuma máquina será capaz de prever e evitar crises em uma equipe composta de pessoas que não se encaixam no cargo desejado. Mas a IA pode ajudar a conectar as pessoas corretas – e prever quem vai se dar bem em determinadas empresas, vagas ou projetos.
É justamente o que faz a Etalent, empresa de behavioral technology: investiga a personalidade, talentos e habilidades dos candidatos e os
associa às necessidades do cargo. Ou coleta informações de funcionários já contratados para saber se suas habilidades batem com deter minado projeto ou com a postura que a empresa espera.
Eles fazem isso por meio de uma espécie de pesquisa, seguindo uma metodologia de análise que identifica quatro estilos de comportamento: Dominância, Influência, Estabilidade (no inglês, Steadiness) e Conformidade (DISC). Cada colaborador responde às questões e registra ali o seu inventário de habilidades, que indicam como ele se sente mais confortável para trabalhar. As lideranças são convidadas para contar sobre as vagas ou cargos, que também entram no gráfico DISC. E aí fazem o match: encontram o par ideal entre vaga e profissional. Ou descobrem qual o estilo de um funcionário para render ainda mais no trabalho.
“Quando contrato uma pessoa cuja natureza não bate com as exigências do cargo, é como calçar um sapato 36 em um pé 42: vai dar errado. Isso leva a fadiga, estresse, perda de eficiência, menor produtividade, doenças e demissão”, explica Jorge Matos, presidente da Etalent. É esse o grande segredo da felicidade no ambiente corporativo. Renata Rivetti, especialista em Psicologia Positiva Aplicada ao Trabalho, complementa: “Quando a gente fala em motivar as pessoas em suas atividades diárias, o líder precisa entender o que elas gostam de fazer, quais suas habilidades. É isso que vai fazê-las felizes e motivadas”.
No fim, o trabalho de detetive da IA existe para isso: aproximar lideranças e liderados e transformar dados em diálogos mais produtivos. Para reduzir crises e criar um ambiente saudável onde passamos a maior parte de nossa vida.
Este texto é parte da edição número 100 (outubro e novembro) da Você RH, que chegará às bancas na sexta-feira (3). Acompanhe nosso site e nossas redes sociais para não perder o lançamento!
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