Profissionais repensam o sentido do trabalho e buscam flexibilidade
A rotina de dedicação exaustiva à empresa deu lugar à busca por mais flexibilidade, desenvolvimento e propósito. Saiba como atender a esses anseios
or muitos anos, o trabalho foi visto como parte central e mais importante da vida. Horas ininterruptas de dedicação eram glamourizadas; e mantras corporativos do tipo “trabalhe enquanto eles dormem”, vistos como a fórmula para ter sucesso. Com a chegada das novas gerações e o advento da tecnologia, esse cenário começou a ganhar novos contornos e a alterar práticas de gestão de pessoas até das empresas mais tradicionais. Com a pandemia de covid-19, essa mudança se intensificou. Apesar de a emergência sanitária ter provocado uma grande crise econômica e insegurança sobre o futuro, deu aos profissionais a oportunidade de refletir mais sobre seus objetivos de vida e o lugar que o trabalho ocupa em sua jornada. Existe um movimento de pessoas — e companhias — que estão desacelerando, procurando um estilo de vida mais simples, com mais qualidade e equilíbrio.
Na prática, há uma mudança de valores em curso, na qual a maioria das pessoas não quer mais viver apenas para trabalhar e crescer na hierarquia tradicional com o único objetivo de ganhar cada vez mais. A busca, atualmente, está focada em flexibilidade, desenvolvimento e propósito. “Antes, a identidade de alguém era o sobrenome da empresa. Hoje, o trabalho perdeu essa centralidade e as pessoas querem mais do que isso; querem viver outras experiências”, diz Anderson Sant’Anna, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Não à toa, uma pesquisa da Gartner mostra que 91% dos líderes de recursos humanos estão preocupados com o turnover de funcionários num futuro bem próximo. Outro estudo da consultoria aponta que apenas 23% dos gestores de recursos humanos acreditam que a maioria dos funcionários continuará trabalhando em sua organização no curto prazo, e só 31% acham que seus atuais funcionários estão satisfeitos com a proposta de valor oferecida pela empresa, o Employee Value Proposition (EVP). Segundo o levantamento, 65% dos candidatos já interromperam um processo de contratação por causa de um EVP pouco atraente, e 85% deles ressaltam que é importante a companhia observar a pessoa por trás do empregado.
Essa mudança na forma de ver o trabalho está muito ligada aos reflexos que a pandemia vem deixando. “Fases de grande impacto na vida das pessoas costumam provocar reflexões profundas sobre propósito e prioridades. São momentos históricos, em que movimentos em escala determinam novas tendências”, explica Rafael Souto, presidente da Produtive, consultoria de planejamento e transição de carreira. Por isso, com a retomada gradual das atividades presenciais, ouvimos tanto falar sobre “a grande renúncia”, fenômeno descrito em 2002 pelo pesquisador americano Anthony Klotz. Em abril de 2021, o Bureau of Labor Statistics (“Escritório de Estatísticas de Trabalho”) contabilizou 4 milhões de americanos que haviam deixado o emprego voluntariamente, por exemplo. No acumulado até outubro, esse número subiu para 20 milhões. Os índices de turnover no Brasil também estão mais altos e, em alguns setores, já se observa um apagão de talentos. “Além da reavaliação e da rejeição de retorno aos modelos tradicionais, muitas pessoas estão pedindo demissão porque não aceitam mais trabalhos que levam ao esgotamento mental”, diz Rafael.
Novas demandas exigem novos modelos
Segundo Vitorio Bretas, diretor de pesquisa e assessoria da Gartner, isso se deve à mudança da lógica do trabalho. Antes, o objetivo tradicional do EVP era apenas o profissional e o que oferecer para uma boa experiência. “Agora o foco deve ser outro. A grande mudança é que os funcionários não são apenas trabalhadores, e sim pessoas com interesses além do trabalho e que fazem parte de famílias e comunidades. Precisamos falar em harmonia e integração do trabalho com a vida pessoal e em como a proposta da empresa apoia isso”, afirma. Isso quer dizer focar não apenas os benefícios, como salário atrativo ou um escritório multicolorido, e sim os sentimentos que a empresa quer proporcionar às pessoas. “Trata-se de um EVP mais humano e com o indivíduo no centro da estratégia”, diz Vitorio. Segundo a neurocientista Ana Carolina Souza, sócia da Nêmesis, empresa de educação corporativa na área de neurociência organizacional, as companhias — e parte das pessoas — tinham um desenho muito racional do trabalho, com um ambiente mais pragmático e de entrega. As questões emocionais não eram bem vistas. “As necessidades mudaram e já não é possível separar os dois mundos: trabalho e sentimentos. As companhias e os líderes de RH precisam colocar o comportamento humano na mesa e conectá-lo às ações”, diz. Ela explica que, atualmente, a retenção passa por três pilares: propósito claro e genuíno, possibilidade de desenvolvimento e de gerir a própria carreira, e autonomia e flexibilidade de onde e como trabalhar.
Ouvir para humanizar
O primeiro passo é a empresa entender, de fato, sua identidade e seu propósito. Nesse sentido, é importante que o RH se atenha a garantir que todas as ações e práticas estejam alinhadas a esses valores, para que os funcionários se sintam pertencentes a uma comunidade. Para isso, é importante ouvir genuinamente as pessoas, como explica o consultor canadense Roger L. Martin, autor do livro A New Way To Think (“Uma nova maneira de pensar”, ainda sem tradução em português). “A área deve parar de dividir os empregados em classes: o operacional e os diretores, por exemplo. Deve ver cada funcionário como um indivíduo único que quer ser tratado dessa forma”, afirma Roger. Em outras palavras, não importa se estão perto da base da organização ou no topo.
Na ClearSale, empresa de tecnologia especializada em soluções antifraudes que, em 2021, recebeu 200 mil candidaturas e contratou 2.210 pessoas, isso é parte da estratégia. Por lá, é comum que a primeira pergunta de um gestor na entrevista de contratação seja quais são os hobbies do candidato, e não quais são suas competências. A ideia é, desde o começo, promover conversas mais livres e autênticas, alinhadas a uma cultura de humanização. Segundo Leonardo Ferraz, diretor de RH da ClearSale, cada um é incentivado a expor suas vulnerabilidades para gerar conexão.
Um dos programas da empresa para motivar essa abertura é o Roda, desenvolvido com a ajuda de uma psicopedagoga. São encontros da liderança com suas equipes para falar de trabalho e de questões pessoais e que acontecem pelo menos uma vez a cada bimestre. Leonardo se lembra de uma Roda, em meio à pandemia, com o CEO. Todo o board foi convidado para a conversa. O presidente queria entender o que estava indo bem para cada um, em termos profissionais e pessoais, e quais eram as aflições nesses dois aspectos. “Todos colocaram seus dramas e fomos descobrindo formas de nos ajudarmos como time”, afirma Leonardo. Há também as “Ts”, encontros realizados semanalmente e organizados de forma voluntária, sem o líder, que trazem temas apresentados por funcionários. Desde a música eletrônica e como ela ajuda a se conectar com as pessoas, como é o caso de Leonardo, até um tema específico de trabalho. “Todo mundo tem pelo menos uma hora por semana para focar seu desenvolvimento pessoal ou profissional, e isso é um critério, inclusive, para avançar na carreira”, diz o executivo.
Livre movimentação de carreira
Por falar em desenvolvimento, a falta de incentivo ao crescimento profissional é um dos principais motivos de demissão voluntária. Mas o RH deve fugir de modelos engessados e ir além da progressão tradicional, como explica Rafael. “No modelo antigo era a empresa que determinava o desenvolvimento do profissional, seu plano de carreira. Hoje, isso precisa ser construído em colaboração com o funcionário, que deve ser protagonista de sua jornada”, diz. Segundo ele, ter uma marca empregadora forte depende também do estabelecimento de uma cultura de protagonismo, diálogo e livre movimentação de carreira. “Não é um processo fácil. Por muitos anos, as companhias acreditaram que, ao contratar alguém, a pessoa se tornava um recurso da empresa; portanto, podiam determinar seus passos. Esse sistema está colapsando”, diz. Para ele, cabe à organização fornecer ferramentas, oportunidades e treinamentos para que o funcionário estabeleça seu crescimento, de acordo com suas demandas e vontades. É a chamada carreira em nuvem. Isso significa menos hierarquia e mais fluidez nas atividades, além de oportunidades para que as pessoas contribuam em atividades que não estão no seu escopo de trabalho.
A Nestlé vem trabalhando nesse sentido. “Muita coisa mudou nos últimos dois anos. Tendências foram aceleradas, como a digitalização e a flexibilidade, o que fez as pessoas repensarem a vida e o trabalho”, afirma Enrique Rueda, vice-presidente de recursos humanos e compliance da Nestlé Brasil. Segundo ele, é crucial o RH saber conectar essas mudanças às expectativas dos profissionais para atrair e reter os melhores talentos. Por lá, a aposta é contribuir para que os funcionários cresçam profissionalmente e no lado pessoal, reconhecendo-os como indivíduos com diferentes perfis e necessidades. “Não sou o RH; sou o Enrique, que gosta de gastronomia, de ler e de estudar. E é assim que vemos todo o time”, diz. Para ele, a grande mudança é trabalhar para individualizar e personalizar as práticas.
Duas ações da companhia colaboram para isso. A primeira é o TalentHub, que teve início em março deste ano. Trata-se de uma plataforma online que permite que os funcionários personalizem seu desenvolvimento, considerando o momento em que estão na carreira e o que desejam aprender. Os 670 selecionados na primeira etapa têm acesso a treinamentos, mentorias e livros com desconto até 31 de dezembro de 2022 — depois desse tempo, uma nova turma é selecionada. Para participar, o funcionário precisa ter sido identificado com alta performance na avaliação de desempenho. São mais de 1,5 mil cursos com certificado, inclusive MBAs, de diversas instituições, como USP, FGV e Saint Paul. O projeto tem o intuito de permitir que o profissional explore seu potencial da forma que quiser, considerando seu momento na carreira e o que deseja aprender. E as aulas vão além dos temas básicos de carreira e negócios, como negociação e liderança. Há a possibilidade de aprender sobre culinária e universo pet, por exemplo. “O negócio se beneficia muito com essa diversidade de assuntos, pois assim são nossos clientes: gostam de cachorro, de games, de culinária. Dessa forma, conseguimos nos aproximar do consumidor e deixar os colaboradores mais satisfeitos e engajados”, afirma Enrique.
Outra iniciativa é o People Match, plataforma que conecta pessoas a projetos de acordo com habilidades e interesses pessoais. Para participar, os funcionários criam um perfil no aplicativo e contam quais são suas competências e os assuntos de que gostam — como games, voluntariado, psicologia —, além dos idiomas que dominam, porque o programa é global. Já os gestores cadastram os projetos em andamento e detalham as atividades realizadas e as habilidades requeridas. E então a ferramenta faz o cruzamento das informações. Desde agosto de 2021, quando foi lançada, a plataforma já recebeu mais de 800 cadastros de perfis e ultrapassou a marca de 40 projetos.
Gestão individualizada
O desafio hoje é ir além da motivação, aquela que fornece estímulos, muitas vezes materiais e iguais para todos, afirma Anderson Sant’Anna, da FGV. É preciso trabalhar o engajamento, que está intrinsecamente ligado a ter um propósito claro, senso de pertencimento e percepção de que a companhia vê cada profissional de forma integral. “Em um mundo no qual tudo muda muito rápido, é importante apostar no que não muda, que são os valores”, diz Anderson. Isso inclui manter o diálogo aberto e interessar-se pelas demandas e pelos sonhos do funcionário.
A Diageo, fabricante de bebidas alcoólicas, vem trabalhando para atender a individualidade dos talentos. Uma das frentes é olhar para a parentalidade. Em 2019, a companhia lançou sua política de licença familiar, com a oferta de seis meses de afastamento para pais e mães. Com dois anos de programa, mais de 90% dos pais usufruíram do benefício, encontrando mais significado e promovendo igualdade de gênero no trabalho e em casa. Como extensão dessa política, a empresa anunciou em maio de 2021 uma assistência financeira para adoção, que apoiará os funcionários com 13.500 reais para cobrir taxas legais e pagamentos suplementares relacionados ao processo. “A adoção sempre foi um tema complexo, com burocracias e cercado de medos e receios. Nossa ideia é tirar essas barreiras da frente de pais e mães, facilitando o acesso a esse momento tão potente e que gera muito propósito”, diz Maria Gabriela Herrera, diretora de recursos humanos para Paraguai, Uruguai e Brasil da Diageo. “Nosso recado é: existe uma vida maravilhosa, cheia de surpresas e afeto com sua família fora do trabalho.”
Flexibilidade não estipula regras
Trabalhar de onde e como quiser também passou a ser um pilar importante de retenção. Saem de cena a exigência da presença física e os modelos rígidos de horário — com a empresa determinando os momentos de entrada, saída e almoço —, e ganha força a flexibilidade. “As pessoas querem trabalhar com autonomia para organizar seu desenho de vida”, afirma Rafael Souto, da Produtive. Mas ele faz um alerta: muitas empresas estão criando modelos aparentemente flexíveis, mas determinando os dias e períodos em que o funcionário precisa estar no escritório. “Trata-se de uma flexibilização com cara de inflexibilidade. Às vezes, aquele é um dia em que o profissional tem um problema na logística com o filho, por exemplo. Oferecer flexibilidade é dar escolha, permitindo que o indivíduo defina os melhores dias para ir à empresa e combine com seu gestor o modelo ideal”, diz Rafael.
Para se adequar às diferentes demandas dos funcionários, a Meta, que até há pouco tempo era conhecida como Facebook, criou um programa de flexibilidade que dá liberdade de definição de dias e horários para a presença no escritório e inclui iniciativas que ajudam o funcionário a harmonizar as demandas de casa e do trabalho. Como o Family Leave, que contempla até seis semanas de licença remunerada para permitir o cuidado de familiares que estejam doentes; e o FB Choice Days, com dois dias remunerados de folga por ano, para um descanso adicional em datas escolhidas pelo funcionário. Além disso, há mais “feriados” na empresa, acompanhando dias próximos às datas estabelecidas globalmente, para criar pontes.
Um exemplo é o Memorial Day, comemorado em 30 de maio, uma segunda-feira, nos Estados Unidos. Na sexta, dia 27 de maio, funcionários de todas as localidades puderam descansar. Em 2020 e 2021, foram mais três dias de folga e, em 2022, a prática foi aumentada para cinco dias. “As necessidades mudam ao longo do tempo. Hoje, uma pessoa pode precisar de mais horas para se dedicar aos filhos; amanhã, para fazer uma pós-graduação”, diz Thais Mingardo, gerente sênior de remuneração e benefícios da Meta para a América Latina. A empresa também oferece dez dias para tirar no primeiro ano de contratação, para que o funcionário não precise esperar 12 meses por um período de folga, e ainda dá, a cada cinco anos, mais 30 dias de férias além do período regular. “Nosso objetivo é que o time sinta que pode falar o que quiser, como ‘hoje não estou bem e preciso me desconectar’, ou ‘estou com um problema de saúde na família e preciso de alguns dias”, afirma Thais. A ideia é quebrar o estigma de que é preciso ficar doente para tirar uma licença. “Acreditamos que os momentos de pausa são fundamentais. As pessoas precisam dedicar tempo a si mesmas, à família e às prioridades para que possam trabalhar de forma mais equilibrada, produtiva e saudável”, diz.
Diante de cada vez mais profissionais repensando o sentido do trabalho em sua vida, práticas a favor da flexibilidade viraram estratégicas. “Ainda há muita mudança por vir, mas o futuro certamente será escrito a partir de grupos capazes de conciliar, de maneira harmônica, razão e emoção, vida pessoal e trabalho, olhando para as pessoas de forma integrada e criando ambientes adequados, prósperos e sustentáveis em todos os sentidos”, afirma a neurocientista Ana Carolina.
Fica claro que o mundo atual pede que as empresas prestem mais atenção ao que as pessoas querem e sentem, estimulando que sejam elas mesmas, sem dividi-las entre um ser que trabalha e outro que vive em casa. E, sobretudo, que ouçam atentamente os anseios, sonhos e preocupações desses indivíduos para melhor atendê-los.
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Esta reportagem faz parte da edição 80 (junho/junho) de VOCÊ RH. Clique aqui para se tornar nosso assinante